terça-feira, 17 de novembro de 2015

Onde ele está? - O Paciente

Já passava das dez da noite quando o celular de Estevão começou a tocar pela quinta vez. Ele nem desviava o olhar do email que estava escrevendo para um cliente, apenas levou uma das mãos ao smartphone e deslizou o botão vermelho. O tempo ia passando e o trabalho parecia que só aumentava. Agora que foi promovido a diretor de uma refinaria de petróleo precisava se dedicar quase que integralmente à empresa. Meia-noite finalmente ele decidiu sucumbir ao cansaço e ir para casa. Vestiu o paletó que estava na cadeira, desligou o computador, pegou a chave do carro, a carteira e o celular e foi caminhando pelo andar vazio, escuro e frio. Ao chegar no elevador foi ver quem havia ligado. Era sua esposa. Ao todo foram doze ligações nas últimas três horas. “O que ela queria? Não sabia que estava trabalhando?”. Irritado decidiu ligar de volta e se surpreendeu quando no primeiro toque Luiza atendeu.

- Onde você está? Tentei te ligar milhares de vezes.

- Você sabe que estava trabalhando. Precisa aprender a controlar seus ciúmes.

- Ciúmes? Eu não estou nem aí para o seu trabalho. Queria falar com você por causa do Kauã.

- O que aconteceu com ele?

- Estamos no hospital. Você precisa vir aqui urgente.

- Mas o que houve?

- Vem para cá, por favor!

O coração de Estevão quase parou, a respiração ficou ofegante e um sentimento de culpa começou a crescer dele. “Droga! Meu filho... O que será que aconteceu com ele?”. Arrancou com o carro pelas avenidas razoavelmente vazias da madrugada, não se importava com a segurança ou com infrações de trânsito, queria apenas chegar logo no hospital.

Ao chegar na recepção, Luiza foi ao seu encontro com o rosto inchado e os olhos marejados.

- O que aconteceu com ele? – perguntou apavorado.

- Ninguém sabe, ele passou mal em casa depois da janta, desmaiou, ai vim correndo para cá. Os médicos não sabem o que aconteceu. – a mãe disse e desabou a chorar novamente.

- E cadê os médicos? – Estevão deixou a esposa para trás e foi em direção a um enfermeiro no saguão. – Por favor, meu filho Kauã está ai dentro. Precisamos de uma notícia.

- Aguarda um pouco aqui que vou procurar o médico e já retorno.

- Não demora, por favor.

Os dois sentaram lado a lado nas cadeiras da recepção. Enquanto ela não parava de chorar, ele resmungava que devia estar em casa com o filho ao invés de passar tanto tempo no trabalho. Dez minutos depois entrou um homem vestindo uma roupa especial e touca que os procurou.

- Com licença, vocês que são os pais do Kauã?

- Sim, sim! O que aconteceu com ele? Podemos vê-lo?

- Sinto muito, mas ele está em isolamento.

- Isolamento? Meu Deus do céu!

- O que houve, doutor?

- Aparentemente ele foi infectado por um parasita que transmitiu uma bactéria que atacou o seu sistema imunológico. Achamos que ele desenvolveu uma variação raríssima de gripe, e devido a sua baixa resistência acabou ficando muito debilitado.

- Mas como pode ser possível? A poucas horas ele estava brincando normal. De repente caiu doente.

- E... Qual o tratamento? O que vocês vão fazer?

- Infelizmente ainda não temos uma medicação específica para esse caso. Temos que aguardar e observar até a manhã pelo menos.

- Mas ele não corre risco?

- Corre sim, mas não temos mais nada a fazer, senhora.

Luiza voltou a chorar copiosamente apoiada no peito do marido que não sabendo o que dizer apenas a abraçou.

As três da manhã os dois permaneciam acordados na base de café. Não tinham notícias do filho, ninguém aparecia e quando pediam informações ninguém estava autorizado a dá-las. Até que de repente, cinco ou seis pessoas vestidas de branco passaram correndo pela porta da UTI.  Apavorado, Estevão foi tentar saber o que estava acontecendo e chegou a invadir a ala proibida, sendo barrado por um funcionário.

- O senhor não pode entrar aqui.

- Mas eu preciso saber do meu filho!

- Vou verificar e já retorno.

Angustiado, ele esperou na porta, olhando pelo vidro e acompanhando parte da movimentação que acontecia ali dentro. Conforme o tempo passava a angústia só aumentava e a agonia de não saber o que estava acontecendo deixava o casal cada vez pior. De repente o médico voltou com um semblante abatido.

- O estado dele piorou bastante nas últimas horas. Tivemos que fazer alguns procedimentos para tentar contornar mas não sabemos se ele vai aguentar.

- O que? Mas o senhor disse que colocaria ele em observação até amanhã.

- Sim, mas por algum motivo ele piorou muito rápido. Eu sinto muito.

Enquanto Luiza caia em prantos no chão, o médico informava que os liberaria para verem o filho, mas apenas pelo vidro do quarto.

Ali, observando o garotinho de apenas quatro anos, indefeso, fraco, totalmente dependente dele, tendo de lutar sozinho pela própria vida, Estevão refletiu o que estava fazendo com sua família. Havia alcançado tudo o que queria na carreira, mas perdia o crescimento do filho, não era um esposo presente e apenas colocava o dinheiro em casa. Descobriu ali que suas prioridades não estavam certas. O que realmente importava estava indo embora, enquanto aquilo que menos valia ocupava todo o seu tempo. Se o dinheiro pudesse comprar a cura de seu filho, com certeza o faria. Mas isso não era possível. Resolveu, então, fazer a única coisa ao seu alcance, por mais que não fosse muito sua praia fazê-lo: orar. Não sabia nem como começar, mas tentou assim mesmo.

“Eu sei que não sou muito bom com essas coisas e que o Senhor talvez esteja decepcionado comigo, porque te deixei de lado durante todo esse tempo, mas eu estou aqui por causa do meu bebê. Eu não sei o que ele tem, talvez só você saiba. Ele é uma criança... Por favor, cuida dele, faz por ele tudo que eu não pude ou que eu simplesmente não fiz...”

Cansado e abatido, Estevão retornou para o saguão e sentou-se na poltrona observando a movimentação que começava a acontecer com o raiar do dia. Então, um homem, vestindo terno e gravata, identificando-se como chefe do hospital foi até ele:

- Bom dia. Gostaria de informa-lo que está chegando um médico especialista no caso do seu filho. Ele vem de muito longe e assim que ficou sabendo se prontificou a vir ajuda-lo. Ele tem um trabalho excepcional na medicina.

- Sério? Isso é de verdade?

- Sim. Talvez agora o menino tenha uma chance real de sobreviver.

Não podendo se conter de alegria, o pai levantou-se e foi ao quarto de Kauã dar a boa notícia a sua esposa, mas a encontrou cochilando na cadeira em frente ao vidro do quarto. Ao virar para o menino, porém, percebeu que ele estava tendo convulsões na cama e algumas pessoas vinham correndo atendê-lo. Com o barulho Luiza acordou e se apavorou vendo o filho sendo segurado e medicado a força.

Ao saírem, o médico disse que a única esperança era o doutor que chegaria em breve. Mas ele precisava chegar rápido. Estevão iniciou uma busca implacável a esse profissional. Foi na recepção, na segurança, no chefe da enfermaria, nos plantonistas mas ninguém sabia exatamente de onde ele era e nem o seu nome, tinham apenas a referência de que era um dos melhores médicos do país e estava disposto a cuidar do caso de Kauã.

Por não saberem de onde vinha, também era impossível prever que horas chegaria, o que só aumentava a aflição. Luiza já havia tomado dois calmantes enquanto o próximo provavelmente fosse para o marido que estava cada vez mais apreensivo. O relógio da parede marcou nove, dez, onze horas e nada. O menino continuava dormindo, mas a qualquer momento podia ter uma piora. Quando, sem alarde nenhum, entrou um rapaz moreno, com óculos, bigode e cavanhaque. Ele usava um terno marrom e foi em direção à UTI. Ao passar pela porta, porém, ele parou, virou-se e caminhou até o casal abrindo-lhe um largo sorriso branco e estendendo a mão.

- Olá! Eu sou o médico que veio examinar seu menino.

- Até que fim o senhor chegou! Por favor, faça o possível, cobre o que quiser, mas salva ele, por favor...

- Estevão, o dinheiro não é nada na vida, nada.  – respondeu mansamente sem perder o sorriso.

Outro tumulto tomou conta da recepção, agora um dos médicos do hospital veio ao encontro deles, chamou o recém-chegado de lado e disse algumas coisas que o fizeram fechar a cara.

- O que aconteceu? O que houve? – perguntou Estevão angustiado.

- Eu sinto muito... – respondeu o médico do hospital.

Os dois se desesperaram, gritavam e choravam apoiados um nos outros.

- Por que o senhor não veio antes? Poderia ter salvo nosso filho. – desafiou o pai.

- Não teria feito diferença vir agora ou antes. O que aconteceu não vai mudar em nada o meu trabalho.

- Do que você está falando?

Ele voltou a sorrir, virou-se e foi em direção ao quarto, seguido por Estevão e a esposa.

Ao chegar, ele colocou a roupa especial, foi em direção ao menino, sentiu seu pulso, ajustou os aparelhos e pôs as mãos em sua cabeça. Pelo vidro, os pais e os médicos da unidade acompanhavam o que se passava ali dentro. Sem entenderem, e sorrindo, viram Kauã acordar, sentar-se na cama e dá um tchau para eles. A mãe entrou correndo para abraça-lo enquanto os médicos se perguntavam o que houve. Eles atestaram a morte a poucos minutos. Mas no meio da euforia o homem que o curou desapareceu.

Alguns dias depois, totalmente recuperado e em casa, durante o jantar, Estevão que acabara de mudar para outro emprego, onde trabalhava menos, comentou com Luiza como queria encontrar novamente aquele médico e perguntar o que ele fizera para trazer seu filho de volta a vida. De repente a campainha tocou e Kauã foi atender. Era aquele rapaz moreno, com a mesma roupa, cavanhaque e bigode.

- E ai amigão! Como você está?

- Ótimo!

Os pais vieram à porta e mal puderam acreditar no que viam.

- Como é possível, como o senhor veio parar aqui?

- Precisava vir até aqui, conversar com vocês.

- Seja bem vindo! E, a propósito, naquele dia você sumiu e nem se apresentou. Qual o seu nome?

Com o seu habitual sorriso, respondeu:

- Meu nome é Jesus. Será que posso entrar?

- É um prazer recebe-lo em nossa casa, Jesus. Por favor, fique a vontade.

E daquele dia em diante, aquela família nunca mais foi a mesma.