sábado, 10 de outubro de 2015

Prazer, o meu nome é...

Certa vez, fui convidado a participar do quadro de funcionários de uma prestigiada empresa em São Paulo. Minha missão era melhorar o fluxo de informações e alcançar a excelência na comunicação interna e externa. Recebi o convite de braços abertos, pois estava ansioso para iniciar o trabalho que se mostrava árduo, mas prazeroso. Eu precisava liderar não uma ou algumas pessoas, mas todos os colaboradores da companhia e, acima de tudo, a maioria dos processos existentes ali.

Logo quando assumi minhas atividades, percebi que o trabalho seria bem mais difícil do que imaginei. Isso porque ninguém acreditava em quem eu era. Quando me apresentavam, riam disfarçadamente; eu passava pelos corredores e notava que as pessoas cochichavam sobre mim, e o pior, circulava um boato de que eu era um usurpador. Era quase impossível acreditar que aquilo estava acontecendo. Fiquei deprimido, chorei várias noites na minha cama. Quando me perguntavam o que estava ocorrendo, respondia que não era nada de grave, mas tratava-se de uma verdadeira crise - uma crise de identidade.

Comecei então a concentrar os meus esforços naquilo e descobri coisas terríveis, começando pelo fato de que praticamente todos ali tinham uma imagem sobre mim totalmente distorcida, pois me viam como um arrogante, sem perspectiva alguma de vida. Diziam que eu era mais feio; chegavam ao ponto de achar que eu era deformado. E para piorar ainda mais, esse não era um pensamento exclusivo dos trabalhadores mais humildes, muito pelo contrário, vários líderes, gerentes e até alguns diretores pensavam o mesmo. A minha autoestima já estava no chão com tudo isso, mas as coisas ficaram ainda piores quando descobri que a organização valorizava mais os estrangeiros. Cobrava-se pouco conhecimento sobre mim, sobre minha história, minha cultura e minha importância, contudo exigiam saberes profundos sobre outros que vinham de diversas partes do mundo, principalmente dos Estados Unidos.

Um dia, quando cheguei à empresa, esbarrei em um gringo. Ele, muito simpático, veio me cumprimentar e se apresentou como English. Disse que seu trabalho ali era de proporcionar uma comunicação mais eficaz com o restante do mundo e fazer com que todos se adequassem à globalização. Em seguida me apresentei, disse que o meu nome era Português, mas que já estava quase mudando para Portuguese, pois poucos me valorizavam da forma como eu era. Contrataram-me talvez por obrigação, mas quase ninguém me via com bons olhos. Olhavam-me torto e quando eu apresentava alguma coisa que estava ocorrendo de forma inadequada, contorciam seus narizes e me chamavam de brega, careta. Isso quando não falavam que eu era um impostor, pois o Português que eles conheceram a vida inteira era um almofadinha, alguém de frescuras que não servia para absolutamente nada, alguém que quase sempre foi digno de zombaria.

Quando terminei de falar, English me deu um forte abraço e disse para eu não me preocupar, porque isso sempre acontecia. O valor geralmente é dado aos de fora e se esquecem daqueles que lhes ajudaram a crescer e a se desenvolver. E ainda me ofereceu toda a ajuda necessária para reverter aquele quadro que, segundo ele, era culpa de uma política pessoal feita a longo prazo. Logo, os primeiros frutos dessa parceria começaram a aparecer e todos que entravam na empresa, além de falar inglês fluente, precisavam ter destreza no português; e quem já trabalhava lá, mas não respeitava o meu padrão, precisou estudar e se aperfeiçoar muito para não se desviar das minhas normas.

Passado um ano e com o fim desse trabalho chegando, senti-me muito feliz, realizado e profundamente emocionado ao ver as mudanças que ocorreram durante aquele curto período. Percebi que, na realidade, não podemos excluir nada e nem ninguém, precisamos andar sempre juntos. Hoje, eu e meu amigo English temos uma parceria firmada: onde um for, o outro também vai. Parceria de tanto sucesso que outros profissionais, como o Español, já nos procuraram para aderir a ela.
Os resultados que obtive naquela empresa foram realmente muito bons, todavia preciso me esforçar muito para alcançar o restante das pessoas do Brasil. Muitas dessas possuem uma visão sobre mim ainda pior do que a que eu tive o desprazer de ouvir, mas acima de tudo precisam me conhecer de verdade para poderem ao menos pensar em melhorar um pouco suas condições de vida.

A luz

Diego era uma criança feliz. Talvez não seja possível explicar essa felicidade pois ela era muito peculiar à sua mente. Nunca saia do quarto, pequeno, circular, no alto de uma torre. Havia apenas uma janela de vidro que ia de cima à baixo na parede com grades e uma cortina vermelha. A mobília era simples, composta por uma cama pequena, uma cômoda com uma jarra d’água e bacia em cima e um tapete. Os poucos brinquedos que ele tinha ficavam jogados ao lado da porta, essa aliás, que nunca era aberta. Tudo o que comia vinha de uma passagem na parede com uma portinha de madeira aberta por fora e quando tinha que ir ao banheiro usava um vaso em frente à janela. Suas primeiras lembranças já o remontavam àquele lugar, por isso Diego não tinha parâmetro para saber se era bom ou ruim, certo ou errado, logo, ele era apenas uma criança feliz.

Seus dias passavam basicamente na janela, de onde ele via uma grande floresta cheia de árvores, uma cachoeira no meio do verde com água branca e ao fundo várias montanhas juntas. Mas o melhor mesmo era olhar para fora durante a noite. Toda a paisagem quer era encantadora durante o dia transformava-se em um grande tapete negro que servia apenas para realçar o brilho de uma luz que vinha de dentro das montanhas diretamente para os olhos admirados de Diego. Por algum motivo que desconhecia, ele ficava absolutamente apaixonado por aquela luz que sequer sabia do que se tratava e transformou aquilo no seu primeiro e único sonho na vida: ir até ela para abraça-la.

O tempo foi passando e a rotina de Diego era sempre a mesma. Acordava, pegava a comida do dia, a colocava sobre a cômoda, brincava um pouco e ia para a janela. E assim os anos foram passando, sempre feliz, sempre alimentando o mesmo sonho... Não sabia o que era família, amigos, não sabia ao menos que estava preso. Seu mundo se resumira àquele espaço, ainda assim algo dentro de seu coração queria conhecer a luz do horizonte. Quando os cabelos do corpo estavam crescidos e os da cabeça ameaçavam cair, ele começou a pensar em alguma forma de sair dali e chegar no lugar onde a luz brilhava. Passava dias inteiros pensando no que poderia fazer, até que concluiu ser mais fácil descer pela janela e atravessar a floresta. Quando decidiu que era isso, passou a refletir como fazer. Sabia que não podia pular, não pela altura, e sim pela grade. Tentou várias vezes quebra-la mas não conseguia. Depois de muitos meses buscando uma forma de cumprir o que queria, ficou triste ao perceber que não era possível transformar seu sonho em realidade. Parou de comer, parou de andar, nem olhar pela janela queria mais, já que sempre que via a luz lhe batia uma tristeza no peito.

Certo dia, porém, ao acordar, tinha algo diferente no quarto: a porta estava aberta. Admirado e ao mesmo tempo com medo, Diego levantou-se mas com receio do que acharia ficou paralisado. Sua vontade era de voltar para a cama e chorar, mas nem isso conseguia. Alguns minutos depois, mais relaxado, o pânico inicial foi substituído por uma curiosidade absurda, o que moveu suas pernas lentamente em direção ao lado de fora. Mas quanto mais próximo de sair do quarto ele estava, mais temoroso ficava e acabava recuando. Ele nunca foi de sentir medo, já que de fato não houve muitas experiências para isso, mas sabia exatamente o que estava sentindo naquele instante. Decidiu então, ir para o único lugar que o acalmava. Abriu a cortina da janela e começou a olhar para fora, em direção as montanhas e ali ficou o dia inteiro, vendo a lua chegar e com e ela o brilho da luz surgir. Diego olhava encantado, alimentando seu velho sonho e pensando em uma maneira de realiza-lo, enquanto atrás dele a porta permanecia fechada, embora estivesse aberta esperando um passo de coragem.

A morte do leiteiro

Marília levantou-se cedo, lavou o rosto, escovou os dentes, trocou de roupa, pôs a água no fogo, tirou o bolo da geladeira e foi buscar o leite que Arivaldo deixava todas as manhãs em sua porta. Naquele dia, porém, ao abri-la, não encontrou nada. Olhou no relógio para certificar-se do horário, mas já estava tarde, ele se atrasou mesmo. Outras vizinhas estavam na mesma situação. Todas se olharam e começaram a estranhar a demora do leiteiro que por anos era pontualíssimo.

Enquanto Marília ainda estava no quintal, o carro da polícia passou em alta velocidade, com a sirene ligada, o que acordou aqueles que ainda dormiam. Curiosas, algumas pessoas seguiram até o lago, que acabara de ser isolado pelo cabo Claudiano para averiguação do delegado Ratão.

- Senhor, o que é aquilo boiando na água? – perguntou o inexperiente cabo.

- Não vê que é um corpo?

- Meu Deus! Será que se afogou?

- Não sabemos, vamos ter esperar os peritos da capital chegarem para descobrirmos. – parou por um instante e observou uma marca no chão – quer dizer, acho que já sei o que aconteceu. Ele foi assassinado.

- Assassinado? – perguntou o assustado Claudiano.

- Sim, olha essa marca de sangue no chão. Ainda tem o rastro até a água. Provavelmente o mataram aqui e arrastaram o corpo para o lago.

- Ah não... E o assassino, quem foi? Ainda está solto?

Ratão o olhou com desgosto, quase que se arrependendo de tê-lo aceito como seu assistente. Mas esperar o que de uma cidade pequena onde o crime mais cruel que se cometia era roubo de galinha?

- É exatamente isso que temos de descobrir. – olhou ao redor e percebeu que os curiosos estavam aumentando em número e com as fofocas. Já tinham praticamente deduzido de quem era o cadáver. – Escuta, você precisa ficar aqui e garantir que ninguém se aproxime da cena do crime, até os legistas chegarem.

- Sim senhor. Mas você vai demorar?

- Espero que não. Mas preciso investigar o caso. O assassino está a solta.

Meio a contragosto, o cabo aceitou, mas manteve-se o tempo todo atento a qualquer movimentação estranha, no menor sinal de alerta sairia correndo. Enquanto se afastava, o delegado parou novamente na marca de sangue e recolheu uma cápsula de bala, colocando-o cuidadosamente dentro de uma saco plástico. Alguns passos a frente encontrou uma pegada e pôs o próprio pé sobre ela, sem encostar, constatando pertencer a uma sapato mais ou menos do tamanho do seu: quarenta e dois. Em seguida pegou o carro da polícia e foi em direção à delegacia.

Em sua sala, Ratão reclinou a cadeira e começou a pensar no que poderia ter acontecido. Em uma cidadezinha tão pacata onde nenhuma mosca no verão era morta, o que levaria alguém a matar o leiteiro, logo ele, um cara tão legal, sem inimigos e muito querido pelas pessoas? Claudiano não era casado, não tinha filhos, morava sozinho, então seria difícil saber por onde começar a investigação. Para a sua surpresa, alguém bateu na porta de sua sala e ao virar-se viu que era Bernardo.

- Desculpe, delegado, mas eu vi o que aconteceu no lago e acho que sei de alguma coisa que pode ajuda-lo.

Ratão o olhou desconfiado, não estava acostumado a ver provas e testemunhas surgirem tão facilmente, mas baixou a guarda e convidou-lhe a sentar. Apoiou os cotovelos sobre a mesa unindo as mãos sob o queixo, mantendo toda a atenção no homem a sua frente.

- Então, é difícil para eu dizer isso, mas acho que minha esposa era amante dele.

- Do leiteiro? – disse Ratão erguendo uma das sobrancelhas.

- Isso. Eu... Sei lá, não tenho certeza e nem provas, mas a Marília anda meio estranha. Fora que...

- Fora que o quê?

- É que escutei umas conversas, uns boatos dizendo que os dois estavam me apunhalando... se o senhor me entende...

- Entendo sim, eu só não entendi ainda se você tem alguma opinião sobre quem matou ele.

- Não, não. Não faço ideia de quem possa ter feito uma coisa dessas.

- Mas você considerou importante eu saber dessa história.

- Sim. Sei lá... Talvez você descobrisse de alguma outra forma e eu queria me antecipar.

- Claro, entendo. – falou um pouco resistente. – bem, mas de qualquer maneira, se você souber de mais alguma coisa, por favor me procure.

- Pode deixar. Obrigado, delegado.

Quando Bernardo saiu, Ratão voltou a sua introspeção, considerou suspeito ele ter se antecipado a dar uma declaração, principalmente sabendo que sua mulher o traia. Aquilo podia ser um tiro no pé ou um blefe, afinal, se ele era o traído, não teria outra pessoa mais interessada na morte do leiteiro. Lembrou-se então, da cápsula que encontrou perto da cena do crime e foi olhar os registros de posse de arma de fogo na cidade. O bom de ali ter poucos habitantes era a facilidade para se catalogar praticamente tudo, como o registro de armamentos. Havia apenas três civis habilitados a possuir revólver: Silvio, Francisco e... Bernardo.

Ratão decidiu se dirigir então até a casa de Marília, aquele devia ser seu ponto de partida, dada a informação do marido. Ao atender a porta ela inicialmente se assustou com a visita mas pediu que ele entrasse e se acomodasse na sala.

- A senhora já deve saber o que aconteceu.

- Oh, que tristeza. Como alguém seria capaz de fazer algo com aquilo, ainda mais com uma pessoa tão querida como o leiteiro?

- Como era sua relação com ele?

Visivelmente constrangida, Marília pigarreou antes da resposta:

- Como assim? Não tinha relação com ele. Todos se conhecem aqui na cidade, principalmente a pessoa que leva leite na sua casa todas as manhãs.

- Mas vocês não eram amigos?

- Como eu disse, delegado. Éramos tão amigos quanto qualquer outra pessoa da cidade.

- Então posso considerar que vocês só se viam pela manhã, quando ele entregava o leite?

- Nem isso, geralmente quando eu acordava ele já havia passado.

- Seu marido possui uma arma aqui em casa, não é?

- É sim, por quê?

- Bem, não estou desconfiando de ninguém, mas provavelmente o assassino usou um revólver e como poucas pessoas tem autorização para posse aqui na cidade, preciso checar todas.

Ela levantou-se, subiu até o quarto e voltou trazendo uma caixa de madeira. O delegado pegou, a abriu, tirou o pano de cima e segurou a arma que estava limpa e parecia estar guardada a muito tempo.

- Nem lembro quando foi a última vez que Bernardo a usou.

- Realmente, não aparenta ter sido manuseada a muito tempo. Pode guardar.

Ela o recolou cuidadosamente na caixa e a pôs sobre a mesa de centro.

- E sobre um boato de que vocês teriam um caso. A senhora sabe de alguma coisa?

- O quê? Que boato é esse? – falou quase gaguejando.

- Bem, eu ouvi dizer que a senhora mantinha um caso amoroso com o Arivaldo.

- Mas que absurdo é esse? Quem lhe contou isso?

- Como eu disse era só um boato. E como ele está morto agora, preciso descartar todas as possibilidades.

- Está dizendo que eu sou uma suspeita?

- Nesse momento todos são suspeitos, dona Marília. Mas não estou acusando-a de nada.

Ela estava visivelmente desconfortável, o que fez com que Ratão desse por encerrado o assunto ali.

- Bem, se souber de mais alguma coisa, ou lembrar, me procure por favor. E desculpe pelo incômodo.

- Tudo bem. – Ela fez menção de levantar-se mas ele agradeceu-lhe, justificando já conhecer a saída.

No caminho até a porta, porém, havia uma parede que impedia a visão de quem estava na sala. Ali, Ratão viu um par de botas que julgou pertencer a Bernardo, e rapidamente pegou uma delas, virou o solado que estava limpo mas que lhe indicara uma valiosa informação: o número era quarenta e dois.
Ao sair, parou na varanda por alguns minutos pensando no depoimento que acabara de recolher e tentando montar as primeiras peças daquele quebra-cabeça. Será que alguém estava tentando criar um caso de amor que não existia? Seria aquilo verdade, mais um mexerico de vizinha desocupada ou apenas uma manobra para despistar a polícia? Pegou o caderninho no bolso do casaco e viu o próximo lugar onde devia ir: a residência do Silvio.

Ao chegar, o próprio lhe recebeu e pediu que entrasse, a esposa e o filho estavam na cozinha tomando café, por isso os dois decidiram conversar nos fundos da casa.

- No que posso ajuda-lo, delegado?

- Bem... Você sabe do que aconteceu, não é?

- Sei sim, pobre homem...

- Eu chequei nos registros da delegacia e vi que você é uma das pessoas com porte de arma na cidade. Gostaria de verifica-la, se possível.

Com uma feição que misturava estranheza e medo, Silvio que não quis contradizer a autoridade pediu-lhe que aguardasse um instante. Enquanto ele subiu até o quarto, sua esposa Carolina foi falar com Ratão.

- Posso falar com o senhor?

Surpreso com a segunda testemunha voluntária em menos de uma hora e quase sentindo-se como um padre no confessionário, ele fez menção com a cabeça autorizando ela a sentar-se.

- Olha, eu não sei o que o senhor sabe do caso, mas talvez eu tenha uma sugestão de quem teria motivo para mata-lo.

Ele inclinou-se um pouco para frente afim de prestar-lhe mais atenção, quando a resposta lhe causou espanto:

- Marília.

- Marília? Por quê?

- Bem, ela ou o marido. Tem um boato correndo por ai de que ela tinha um caso com o leiteiro.

- Boato, mas quem lhe disse isso exatamente?

- Ah, o senhor sabe. Boatos surgem e terminam no vento.

- Claro...

Silvio voltou assustado, e com os olhos arregalados falou que a arma sumiu.

- Como assim?

- Ela estava dentro do guarda-roupa, mas já revirei o quarto de ponta cabeça e não encontrei. Meu Deus! Será que não foi um dos meninos?

- Impossível, eu arrumei toda a casa ontem e não vi nada. Fora que ela ficava no alto, eles não alcançariam, nem subindo na cadeira.

- E quando foi a última vez que você a viu?

- Não sei exatamente, a uns três dias.

- Existe a chance de alguém ter invadido a casa e roubado ou de você tê-la deixado em algum lugar?

- Não, não, nada disso pode ter acontecido. Ninguém entrou aqui em casa e nunca saio com ela. – parou um pouco para pensar e continuou – quer dizer, só na quinta.

- Quinta? O que aconteceu?

- Ah, eu sai, fui na casa do Bernardo assistir o jogo. Ai levei minha arma para ele dar uma olhada, porque eu achava que tinha alguma coisa errada com o gatilho.

- E ele é especialista nisso?

- Ah, entende mais que eu. Já foi caçador.

- E você a trouxe de volta?

- Sim, com certeza...

- Mesmo?

- Mesmo. Lembro de tê-la colocado de volta no lugar.

Um tanto desconfiado, Ratão observa discretamente os pés dos dois e tentou segurar o riso ao perceber que ambos usavam calçados pequenos, trinta e seis ou trinta e oito, no máximo.

- Bem, e vocês não receberam nenhuma visita nos últimos dias?

- Não.

- Na verdade recebemos sim. – cortou Carolina.

- Quem? – perguntou espantado o marido.


- Na sexta, enquanto você estava fora a Helena e o Francisco vieram aqui a noite.

- E por que você não me falou?

- Desde quando tenho que te dar satisfações sobre meus amigos que vem me visitar?

- E qual foi o assunto?

- Ah, nenhum em particular. Só jogamos conversa fora, fazia tempo que não nos vínhamos. E eles também trouxeram algumas coisas que eu pedi do açougue.

- O que exatamente?

- Compras normais, uma peça de alcatra, um pouco de carne moída, arroz, ovos, leite.

- Leite? Pensei que vocês comprassem do leiteiro.

- Não. Preferimos o do açougue que é semidesnatado, o do leiteiro é muito gorduroso. Quer dizer, era...

- Silvio, onde você estava na sexta a noite?

- No bar, jogando truco.

- Ok, acho que já está bom. Silvio, mais tarde vai na delegacia, procura o Claudiano para fazer o boletim de ocorrências do sumiço da sua arma.

- Mas é necessário?

Estranhando a pergunta, a resposta foi simples:

- Claro. Alguém a roubou, não foi?

- Bem... não sabemos na verdade.

- Pois é justamente isso que vamos descobrir. Além do mais, existe uma arma a solta pela cidade, se alguém a usar para algo ilegal é melhor você estar prevenido.

Um pouco assustado Silvio concordou e acompanhou o delegado até a porta. Ao sair, Ratão decidiu ir até a próxima casa a pé, e foi pensando sobre o que já descobrira até então. A história do romance do leiteiro com Marília estava ganhando mais força, o que achava mais estranho era que ele próprio nunca tinha escutado isso e as únicas pessoas que diziam ter ouvido o tal boato se prontificaram a falar isso para o delegado, como se fizessem questão de deixar claro. Mas a arma de Silvio não estava lá e o que garantia que ele dizia a verdade? Como saber se não era uma armação dele para despistar a polícia? Agora já estava apertando a campainha de mais uma testemunha, dessa vez Francisco.
Quem lhe recebeu foi a esposa, Helena. Era uma mulher que chamava a atenção não por sua beleza e sim pela força. Era grande, cerca de 1,80 metros e com certeza mais de 90 quilos, além de uma voz grossa. Era conhecida pelos vizinhos maldosos como a “mulher macho” da cidade.

- Oi, meu marido está no açougue agora.

- Pensei que vocês não abrissem no domingo.

- E não abrimos mesmo, mas nesse fim de semana muita gente veio bater aqui na porta pedindo leite, devido a desgraça que aconteceu com o pobre Arivaldo.

- E vocês sabem de alguma coisa que possa nos ajudar nas investigações?

- Eu não sei de nada. Não éramos nem muito amigos. Só sei que a última vez que o vi foi ontem, quando entregava leite nos vizinhos.

- Certo. E vocês tem alguma arma em casa?

- Por quê? Desconfia que tenhamos feito alguma coisa?

- Não. É só uma averiguação de rotina em casos como esse.

- Temos sim, fica aqui na estante. Deixa eu pegar.

Ela levantou-se e mostrou a arma para o delegado que a observou atentamente, em todos os detalhes, devolvendo-a em seguida.

- Eu soube que fizeram uma visita à senhora Carolina na última sexta.

- Sim, fomos fazer algumas entregas e aproveitamos para colocar o papo em dia.

- E não surgiu nenhum assunto estranho, relacionado ao leiteiro, por acaso?

- Que eu lembre não. Quer dizer... quando eu voltei estavam falando sobre ele ser amante da Marília, eu acho. Mas depois pararam o assunto.

- Quando você voltou de onde?

- Tinha ido ao banheiro, quando voltei estavam o Francisco e a Carolina falando isso.

- Então foi o seu marido que levantou a dúvida para ela?

- Não sei, mas acho que não. As pessoas sempre comentam isso no açougue, com certeza os dois ouviram lá também.

- Hum... Bem, eu acho que vou até o açougue conversar com seu esposo, se não se incomoda.
- Claro que não. Espero poder ajuda-lo.

Ele esboçou um sorriso e saiu rumo ao estabelecimento. No caminho o celular tocou. Era o cabo Claudiano.

- Delegado, a perícia acabou de chegar.

- E então, já descobriram alguma coisa?

- Sim, acharam uma arma no fundo do lago.

- Uma arma? E você tem a numeração dela?

- Sim. Posso falar?

- Pode.

Por sorte, Ratão levava no bolso uma lista com a relação em posse dos três cidadãos, e aquela numeração, surpreendendo-o ou não, pertencia à Silvio.

- Olha só, acho que peguei o criminoso.

Decidiu ir até o açougue apenas para cumprir o protocolo, mas já tinha quase certeza do que ocorrera na noite anterior. Ao chegar deparou-se com uma fila de pessoas querendo pegar leite. Olhou dentro do balcão e Francisco ao vê-lo pediu que esperasse pois não podia deixar os clientes sem atendimento. Ele esperou, quase uma hora, mas esperou.

- Desculpe a demora, delegado. Como posso ser útil? – tudo que lhe faltava em tamanho sobrava-lhe em simpatia.

- Queria saber se vocês tinham algum tipo de relação com o Arivaldo.

- Não, não éramos amigos, nem nada. Nem leite pegávamos dele. Mas nada contra também.

- Estranhei vocês terem aberto hoje. Se me lembro, tinham dado entrada no pedido de falência do açougue.

- Pois é, os tempos não estavam fáceis e pra completar eu estou divorciando da Helena. Ai é ainda mais difícil. Mas como tinha bastante gente nos procurando hoje decidi abrir.
- Vocês estão divorciando?

- Sim... Parece que o amor acabou, sabe?

- Hum... E me diz uma coisa, quem costuma trabalhar aqui? Só você?

- Os dois. Mas eu fico mais na rua e ela no caixa, fazendo a parte administrativa, as compras.

- Certo. E por acaso você ouviu nos últimos dias alguma história de que o leiteiro tivesse uma amante?

- Olha, eu até ouvi, mas não dei muita bola, sabe como mulher é né? Adoram provocar um pouco de discórdia, principalmente quando estão infelizes com a própria vida, ai amam destruir a vida dos outros.

- Uhum... Sei bem. Obrigado pela sua atenção Francisco. E boa sorte aqui!

- Eu que agradeço.

Ratão estava feliz, pois em poucas horas acreditava ter solucionado o crime mais cruel daquela cidade no último século. Mas antes de ir à delegacia, pegou o carro e passou no lago para cumprimentar a equipe da capital que foi ajuda-lo e buscar o cabo Claudiano.

No caminho, contando tudo que investigou para o cabo, ele rapidamente chegou a uma conclusão:

- Ah, então quem matou foi o Bernardo, de ciúmes.

- Mas por que ele foi até a delegacia assim que descobrimos? Não teria sido burrice?

- Só se estivesse achando que nós descobriríamos o caso de qualquer forma e já se antecipou para que o descartássemos.

- E a arma do Silvio, o que fazia lá na lagoa? O Bernardo podia ter usado a dele para mata-lo.

- Mas daria muito na cara. Ele pode ser amante da Carolina, inventaram a história do romance entre a Marília e o leiteiro para terem uma desculpa, então tentaram incriminar o Silvio com a arma que a própria pegou e depois dariam um jeito de se livrar também da Marília, e poderiam viver felizes para sempre.

- Mas se tudo isso foi invenção, por que matar o leiteiro e não a Marília e culpar o Silvio? Não seria muito mais simples? Afinal, o que o leiteiro tinha a ver com a história?

- Pode ser que fossem amantes de verdade e a descoberta veio a calhar. Ou ele descobriu que Bernardo mantinha um caso com a Carolina, o que fez com que ela o matasse e por algum motivo tentou incriminar o amante, ou ainda sua esposa, já que sabia que ele veria o marido com a arma alguns dias antes.

- Bem... Tudo isso faz sentido, mas acho que tenho uma teoria que explica melhor o que aconteceu.

- E o que você vai fazer?

- Estou esperando um mandato de prisão de ser expedido. Vamos colocar o assassino na cadeia.
Mais de duas horas depois o mandado chegou às mãos do delegado que entrou no carro acompanhado do cabo, ligou a sirene e foi em direção à casa de Francisco. Ao chegar, encontrou além dele e da esposa, Bernardo, Marília, Silvio e Carolina.

- Que bom que vieram.

- Por que o senhor pediu que eles viessem para cá? – Perguntou Helena.

- Porque todos aqui foram vítimas da dissimulação de um assassino frio.

- Quem?

- A senhora, dona Helena. Você está presa e tudo que disser poderá ser usado contra você no tribunal. Tem direito a um advogado para defendê-la.

Após algemá-la, em meio à surpresa de todos ali, Ratão pôs-se a explicar o que aconteceu.

- Bem, em uma cidade pequena é difícil ter concorrência, e por algum motivo o açougue está mal das pernas e vocês estão em processo de divórcio, o que na pior das hipóteses pode fazer com que os dois saiam no prejuízo devido às dívidas do negócio. O jeito era encontrar algo que pudesse ser vendido. A carne não era tão vantajosa pois é muito fácil ir para o centro e comprar mais barato lá, o jeito era apostar no leite, mas em uma cidade acostumada com um leiteiro que faz a entrega todos os dias pela manhã na porta das casas, a única forma de alavancar isso seria com a morte dele. E foi isso que a senhora providenciou.

- Você não sabe o que está falando! Vai se arrepender disso.

- Bem, o curioso é que vocês basicamente vendiam leite desnatado em pouca quantidade e hoje quando a cidade toda lhes procurou, vocês já tinham um estoque que atendia a todo mundo, ou seja, a pessoa responsável pela administração e pelas compras, ou seja, a senhora, já havia se preparado com antecedência. Ai eu pergunto: como? Mas você sabia também que precisava despistar a polícia, então quando foi na casa da Carolina na sexta, ela provavelmente comentou que o marido havia levado a arma para o Bernardo ver e então teve uma ideia. Já tendo conhecimento do boato de que o Arivaldo era amante da Marília, decidiu ir ao banheiro, mas foi no quarto do casal, procurou a arma e a levou embora, pois acreditou que ligaríamos a história da traição com a possibilidade de o Bernardo ter pego a arma do amigo no dia anterior, tentando incriminá-lo.

- Meu Deus! Você fez isso mesmo? – perguntou a surpresa Marília.

- Que monstro você é? – disse Francisco com os olhos marejados.

Helena não conseguiu segurar o choro, o que já lhe servia como uma confissão. Então o cabo fez uma outra pergunta ao seu superior:

- Mas e a marca de sapato que encontramos lá?

- Era dela. Olha o tamanho do corpo e olha o pé. Com altura de homem, o pé também pode medir tranquilamente quarenta dois.

Todos olharam para o sapato dela e constataram que era verdade aquilo também.

Ela saiu algemada, levada por Ratão e Claudiano. Francisco os acompanhou até a rua e dentro da casa, Bernardo perguntou para a esposa:

- Marília, você teve realmente algum envolvimento com ele?

- Que absurdo, meu amor! Claro que não.

Embora soubesse que aquilo não tinha nenhuma ligação com o assassinato, preferiu não contar a verdade sobre isso para o marido. Esse segredo, Arivaldo, o leiteiro, levou para o túmulo.

A bruxa, o unicórnio e a princesa

Rodrigo já não sabia o que era ter uma boa noite de sono a pelo menos um mês, quando se intensificaram os preparativos para o seu TCC. O trabalho era todo dele, pois devido a falta de tempo, ninguém conseguiria acompanha-lo em sua rotina maluca. Os últimos dias, porém, foram ainda mais desgastantes. A pelo menos uma semana seu cérebro funcionava movido à café e energético. Trabalhava durante o dia, relia o trabalho nas pausas e no almoço, comia um lanche qualquer quando dava, lia novamente no ônibus, no metrô ou em qualquer outro lugar que estivesse, estudava as matérias da noite na faculdade e de madrugada mergulhava mais uma vez nos livros, no computador e onde fosse necessário para finalizar o trabalho. Aquele, lembrava-se ele, era o último obstáculo a ser superado antes de alcançar o seu sonho: ser engenheiro.

O dia da apresentação começou antes mesmo do anterior terminar. Havia acabado de cochilar quando o despertador tocou. Rodrigo levantou-se devagar, mas o cansaço e as olheiras logo sucumbiram à adrenalina e ao sorriso pela chegada daquela data, que para ele, era tão importante. Tomou um banho rápido, colocou uma roupa, encheu a mochila de livros e saiu de casa, só não tinha percebido que no lado de fora caia uma chuva torrencial. Procurou um guarda chuva velho dentro de uma caixa na garagem e achou um cor-de-rosa, que era melhor do que nada. Como o aguaceiro não dava trégua, resolver sair assim mesmo, pois caso se atrasasse para entrar no trabalho, não poderia sair mais cedo. Logo percebeu que aquela não fora uma ideia sensata. Na metade do caminho entre sua casa e o ponto de ônibus, bateu uma ventania que quase o levou embora, não o fez, mas o seu guarda-chuva não teve a mesma sorte. Desolado e já todo molhado decidiu após uma análise mental abrigar-se embaixo de uma árvore, que não desapontou sua conclusão, nenhum raio foi atraído para ela. Após uns cinco minutos a chuva diminuiu e ele pôs-se a correr o mais rápido que conseguia.

Chegando na avenida, precisou parar e esperar o semáforo lhe permitir a travessia, o problema é que nesse tempo o bendito ônibus estacionou no ponto. Todo molhado e com medo de se atrasar, decidiu arriscar a vida mais uma vez e como que por um milagre chegou ao outro lado são e salvo, pena que o motorista não o viu, fechou a porta na sua cara, mesmo com as batidas dadas na lateral, e manobrou para sair. Conformado, Rodrigo virou-se e foi em direção ao banco, quando um senhor de cabelos brancos e bengala começou a lhe apontar para trás e cochichar alguma coisa.

- O quê? Não estou entendendo.

Um outro rapaz, forte e com um boné, disse:

- O ônibus, cara, corre lá!

Rodrigo virou-se de volta o viu que o motorista havia aberto a porta mas estava querendo fechar, então mais uma vez correu e conseguiu embarcar, ainda que sob os olhares divertidos de quem acompanhava a cena. Pelo menos ele entrou e não chegaria atrasado no serviço. Passou pela catraca e ficou procurando algum banco vazio, o que é claro não encontrou.

Encharcado, continuou andando pelo corredor relativamente vazio e parou no fundo , ao lado de uma simpática senhora de cabelos brancos e muitas rugas no rosto e um cara magro com uma tentativa frustrada de cavanhaque com fone de ouvido. Pôs a mochila toda molhada no chão e logo pensou que era um gênio por colocar o trabalho dentro de uma pasta, senão estaria todo molhado como o restante das coisas. Tirou o caderno de dentro e o abriu, intencionando dar mais uma revisada no que falaria para a banca dali a algumas horas. Ele estava um pouco molhado mas ainda dava para ler o que estava escrito. Logo de cara, porém, percebeu ter pego o caderno errado. Aquele tinha um título estranho: Malleus Maleficarum . O que era aquilo? Latim? Alguém devia tê-lo posto por engano lá, mas quem? Rodrigo não desgrudava daquela bolsa por nada. Ao abrir aquilo, percebeu páginas com o amarelo velho, folhas duras e levemente gastas nas margens. Não estava escrito em português, ele sabia, mas conseguia entender perfeitamente o que dizia. Um latim rústico, acompanhado de diversas figuras, com monstros, reis, castelos, forcas. Sem entender o que fazia com aquilo nas mãos, levantou o rosto e no lugar da simpática senhora sentada em sua frente, quem lhe dirigia o olhar era uma bruxa horrível, com um nariz pontudo, um véu negro na cabeça e língua bifurcada como uma serpente. Os olhos de Rodrigo saltaram e voltaram-se ao livro, onde dava claras instruções de como agir em uma situação daquelas.

A senhora preocupou-se com a forma como o jovem a olhava e lhe perguntou se estava tudo bem. Rodrigo com a respiração cada vez mais ofegante respondeu um “cala a boca, sua bruxa!”. Ela ficou transtornada e sem reação, ao passo que um homem sentado na cadeira da próxima fila o interrogou: “o que você pensa que está fazendo?”. Rodrigo sem entender onde estava, viu um cavaleiro, vestido com um escudo dos pés à cabeça levantar-se ao seu lado perguntando o que está havendo. Ele fechou o livro e gritou: “Precisamos nos unir para acabar com elas. São um exército do inferno tentando nos levar embora.”

Uma jovem vestida de social, que estava em pé perto da porta, entrou na discussão: “do que você está falando?”. Rodrigo a enxergou como uma linda princesa, vestida com um radiante vestido branco e ajoelhou-se para cumprimenta-la.

-Mademoiselle, perdoe-me pela demora, mas em breve a tirarei desse recinto do mal e a levarei em paz e segurança até nosso castelo onde viveremos felizes para sempre.

A moça, claro, ficou inconformada com aquilo e com cara de poucos amigos enfiou a mão no rosto do rapaz no mesmo instante em que o motorista deu uma freada brusca. O resultado foi que Rodrigo caiu desacordado e foi ralando pelo corredor.

Ao acordar viu a moça de social, a simpática senhora e várias outras pessoas ao seu redor. Continuava no ônibus, e todos perceberam que ele podia estar delirando por causa da febre, então o puseram sentado e pediram para o motorista ir até o hospital.

- O que aconteceu? – Ele perguntou.

- Você mandou ela calar a boca e a chamou de bruxa.

- Mas tudo bem, meu filho. Você está fervendo e está molhado da chuva.

Ele respirou fundo, olhou para fora e viu algo mágico. Um unicórnio correndo ao seu lado, daqueles com um chifre na testa. Em cima estava um cavaleiro vestido com uma roupa de couro preta que olhava em seus olhos e tentava falar algo, que ele entendeu sendo “não desista de sua missão”, mas na verdade o motoqueiro com a antena na moto perguntava “o que tá olhando, irmão?”.
Após aquela mensagem clara de qual era sua missão no mundo, voltou a olhar ao seu redor e ali estavam a bruxa, o homem com a armadura, a princesa e ainda outras pessoas. Na verdade percebeu estar em um mundo diferente, o mundo da fantasia, que era real, ele era de lá, tudo que passara até então era um teste. Aquela era sua verdadeira missão: resgatar a princesa encantada das mãos daquela bruxa nojenta e seus capangas. De repente deu um grito de guerra que assustou a todos, levantou-se e deu um soco no rapaz de terno, que estava para mata-lo, um chute na moça da porta que queria atirar-lhe um encanto da morte e quando foi em direção à tal bruxa, percebeu um anão nos braços de uma serviçal da velha.

- O que esse anão faz nos seus braços? Você o está protegendo?

Chorando, a pobre mãe que levava o filho de três anos ao médico disse que ele era só uma criança e implorou por compaixão.

- Pobre mulher, sua família deve estar de refém no caldeirão amaldiçoado, o que está cegando seus olhos. Pois bem, proponho um acordo, a vida do anão pela da bruxa?

- O quê? Você está louco? – gritou uma voz lá na frente.

- Exijo a liberdade de minha amada e morte a essa feiticeira!

- Espero que sua amada esteja fora desse ônibus. – respondeu a princesa.

- Não se deixe levar pela pressão das circunstâncias, meu amor.

De repente o som de uma pancada no vidro fez com que todos olhassem para fora. Era outro cavaleiro montado em um unicórnio. Dessa vez, porém, foi possível ouvir sua mensagem:

- Algum problema ai?

No mesmo instante um amontoado de vozes dizia que sim, pediam socorro, que chamassem a polícia, os bombeiros, a TV, mas Rodrigo entendendo ser uma mensagem para ele, gritou:

- Silêncio! Sir, agradeço sua ajuda e quero pedir-lhe auxílio para resgatarmos a princesa aqui feita refém.

- Só se for sua refém, seu louco!

O motoqueiro, sem entender nada, parou a moto no acostamento para chamar a polícia. Dentro do ônibus, a criança, a simpática senhora, a moça de social, a que levou o chute e a mãe do garotinho choravam enquanto os homens mantinham Rodrigo amarrado em um dos bancos.

- Vocês estão do lado daquela bruxa, vão acabar se arrependendo. Precisam me soltar para garantirmos a integridade do mundo todo.

O que vestia armadura olhou para o simples camponês e com um aceno de cabeça concordaram no que deveriam fazer, e sem pestanejar, deu um suco bem dado no rapaz, que apagou imediatamente.
Rodrigo acordou com uma baita dor de cabeça, em uma cama de hospital, com sua mãe ao lado.

- Oi meu filho, você acordou? Como está se sentindo?

- Eu... Estou aonde?

- No hospital, você não lembra?

- A princesa? Como está a princesa?

- Que princesa, meu filho? Te achamos debaixo de uma árvore perto de casa. Caiu um raio nela enquanto chovia e você desmaiou.

- Não... Não aconteceu nada na árvore. Eu peguei um ônibus e ele me mostrou quem eu realmente era.

- Meu querido, você estava muito cansado, não dormia, não comia direito e ainda pegou toda aquela chuva e uma descarga elétrica daquelas.

- E o meu TCC?

- Sinto muito, você ficou uma semana inconsciente.

- O que?

- Mas não se preocupa. Quando você se recuperar, podemos remarcar sua banca na faculdade. Agora descansa que eu vou chamar um médico.

Ela lhe deu um beijo na testa e saiu do quarto, mas não fechou a porta. Enquanto olhava para fora, ele viu uma enfermeira bem anciã passando, mas ao passar em sua frente parou e o olhou em seus olhos. Era a mesma velhinha simpática e saia de seu sorriso forçado uma língua de serpente...

Alguém pra mim

Era sábado à noite, meus amigos me chamaram para ir ao apartamento da Denise assistir um filme, mas estava chovendo e ela morava longe, então decidi ficar em casa lendo um livro ou navegando na internet. Achei no meu guarda-roupa “O menino do pijama listrado”. Ganhei ele há uns dois anos mas nunca consegui lê-lo e naquele dia tentei pela terceira ou quarta vez iniciar a leitura. Não que a história fosse ruim, não dava nem para avaliar ainda, nem o começo era chato, mas alguma coisa me impedia de prosseguir depois da segunda página, devia ser preguiça, então mais uma vez guardei-o e peguei o notebook, liguei e pus no meu colo na cama.

Acessei minha página no facebook e de cara já vi o pessoal reunido na casa da Denise tirando fotos e comendo pizza. Estavam lá a Roberta, a Giovanna, o Lucas e o Felipe. Só faltava eu, embora quisesse muito estar com eles, queria mais estar no meu quarto naquela noite chuvosa de sábado. Desci um pouco a barra de rolagem e o site me mostrou alguns perfis que talvez eu conhecesse. Dei uma olhada e não vi ninguém interessante, até que o último me chamou a atenção. Tínhamos alguns amigos em comum, éramos formados na mesma área e ele era muito bonito, moreno claro, cabelos escuros, olhos castanhos e um sorriso perfeitamente branco. Nunca adicionava ninguém que não conhecesse, na verdade nem era muito ativa nas redes sociais, passava a maior parte do tempo lendo o que os outros postavam, mas resolvi abrir uma exceção para aquele rapaz, chamado Vinicius. – Putz, o que eu fiz? – o pensamento veio imediatamente depois que teclei na opção enviar convite. Tentei desfazer, mas não deu tempo, ele foi mais rápido que eu e já me aceitou. Por alguns instantes fiquei olhando sua foto, sem reação, mordendo o lábio e batendo com o dedo no computador, não sabia bem o que fazer, embora a opção de deixar pra lá e não fazer nada fosse perfeitamente cabível. Quando finalmente tomei uma atitude e fui sair da página, subiu uma janela no bate-papo:

“Oi
Desculpe, mas nos conhecemos?”

Meu coração palpitou mais forte, não sabia exatamente o que fazer, só pensava na grande burrada que cometi e agora tinha que resolver aquilo, não podia deixar o menino no vácuo.

“Oi. É... acho que não nos conhecemos, é que vi sua foto e achei que já tivéssemos nos visto” – respondi, e menti, claro que não foi isso, mas não tinha coragem de falar a verdade. – “desculpe.”

Ele estava digitando alguma coisa, devia pensar que menina tapada eu era.

“Ei, tudo bem, acho que nunca te vi, mas podemos conversar?”

Ufa... Mas ele queria conversar comigo?

“Claro que podemos.”

“Legal, eu sei que já leu o meu nome, mas deixa eu começar sendo o mais educado possível, prazer, sou o Vinicius.”

“rsrs... eu sou a Letícia, o prazer é todo meu.”

“☺”

“Eu vi que temos um amigo em comum, o Fernando, de onde conhece ele?”

“Ah, nós estudamos juntos na facul, e vocês?” – respondi.

“A gente morava na mesma rua.”

Àquela altura já estava sorrindo sem perceber. Deitada na cama, teclando com ele nem vi o tempo passar. Já era uma da manhã.

“Ei, já está tarde...” – falei.

“Nossa, é verdade, nem percebi...rsrs

Foi tão legal conversar com vc.”

Ele falou isso mesmo?

“Também gostei de tc com vc”

“A gente pode se falar depois, tô sempre online no celular, pode chamar qualquer hora.”

“Legal, pode deixar. Mas vc tbm pode me chamar.”

“Pode deixar. Boa noite Letícia”

“Boa noite!”

Uau! O que foi aquilo? Nem imaginava que ficar em casa me renderia aquele bate papo tão bacana. Estava caindo de cansaço, mas fiquei tão feliz que não conseguia pensar em mais nada, só no Vinicius. Quando estava quase pegando no sono lembrei que não atualizava minhas fotos do facebook a muito tempo, a do perfil mesmo devia ter mais de um ano. Tinha que alterar. Mas não foi por ele, pensei. Claro que era. Liguei novamente o note e passei vários minutos tentando escolher uma nova foto. Era difícil porque não gostava muito de câmeras. Nunca me considerei fotogênica, talvez o jeito fosse tirar outra, mas eu estava toda descabelada, com a cara amassada e já passava das duas da manhã para eu me arrumar. Acabei voltando para a cama e dormi melhor do que qualquer outra noite.

Alguma coisa me fez levantar cedo no domingo. Um despertador interno me acordou as oito e instantaneamente peguei o celular e fui olhar se não tinha nenhuma mensagem nova. Não tinha. Mas também, ele devia estar dormindo ainda. Durante o dia levei o celular junto para todos os lugares, esperando algum oi, mas nada, nem online ele ficava. Pensei em chama-lo, mas isso podia pegar mal, então decidi esperar. E esperei até desistir. Nove horas da noite já estava conformada de que ele não queria nada sério e tudo não passou de uma viagem da minha cabeça, até que meu celular vibrou. Pulei do sofá e o peguei no rack, era o Vinícius, meu coração voltou a pular e outro sorriso apareceu no meu rosto.

“Oi, td bem? Só queria te desejar uma boa noite.”

Ahh, que bonitinho.

“Oi, obrigada! Pensei que não quisesse mais conversar”

Putz, que burra, eu e minha mania de falar as coisas sem pensar e nem dava pra cancelar o envio.

“kkkk boba, nada a ver. Tive um dia corrido, só isso.”

“Tudo bem, mas uma boa semana pra vc hein.” – falei.

“Você já vai dormir?”

“Na verdade não... tá cedo ainda.”

“Se não for te atrapalhar, podemos conversar”

“Não atrapalha não, não ia fazer nada...”

“Legal”

E assim foi, ficamos até a uma da manhã de novo, conversando sobre todos os assuntos possíveis. Falamos de faculdade, música, trabalho, família, esportes, livros. Acho que não faltou nenhum assunto. Uma pena que precisava ir dormir, no dia seguinte levantaria cedo. Mas um pedido do Vinicius me deixou desnorteada:

“Posso pegar seu telefone?”

Relutei um pouquinho mas acabei cedendo. Depois ele também me enviou o número de celular e já me mandou um “oi” por lá.

Segunda de manhã cheguei na empresa sem conseguir esconder a felicidade. Estava rindo à toa, literalmente, todo mundo me perguntava o que tinha acontecido e eu respondia que não era nada. Algumas amigas mais próximas chegavam a dizer: “qual o nome dele?”. Não podia estar tão claro que era um rapaz... Ou será que estava? Passamos o dia inteiro falando pelo whatsapp, mas quando sai, no caminho para pegar o ônibus meu celular começou a tocar. Era uma ligação, do Vinicius. Comecei a respirar mais rápido, não sabia o que falar, se devia atender ou não, até que decidi deslizar a tecla verde. Coloquei no ouvido e não disse nada, até que ele falou:

- Alô? Letícia?

- Oi, sou eu, é o Vinicius?

- Isso, desculpa, tô te atrapalhando?

- Não, não. Tô indo embora já.

- Ah, é que a gente já se falou tanto por mensagem que queria ouvir sua voz.

- Nossa, que bonitinho. Acho que eu fui mais feliz ao ouvir a sua, tão doce, igualzinha como imaginei.

- Obrigado... A sua que é doce, linda, como a sua foto no facebook.

- Nossa, mas aquela foto é tão antiga. Ia trocar ontem e acabei esquecendo.

- Então você deve estar ainda mais bonita agora...

- Acho que não é pra tanto... Vini... – de onde tirei que podia chama-lo apenas de Vini se acabamos de nos conhecer? – cius...

Tenho que desligar porque vou subir no ônibus e ele está bem lotado. Depois nos falamos, pode ser?

- Pode sim, claro. A noite te ligo.

E cumprindo a promessa ele ligou mais tarde, depois no dia seguinte, e no outro, no outro, no outro e no outro dia. Todos os dias nos falávamos o tempo todo praticamente, fosse por mensagens ou por ligações. E assim continuou por umas duas semanas. Em uma sexta minha amiga Denise apareceu de surpresa lá em casa. Pra variar, eu não tinha saído e ela estava preocupada comigo.

- Está acontecendo alguma coisa, Letícia? Você tem dado uns perdidos na gente.

- Não estou, Dê. Só ando meio ocupada ultimamente.

- Hum... ocupada? Com esse sorriso? Acho que essa sua ocupação atende por um nome e sobrenome...

Não queria falar para ninguém, afinal, não estava acontecendo absolutamente nada entre o Vinicius e eu, mas pelo jeito meu corpo não conseguia mais escondê-lo dos outros e acabei falando tudo pra Denise. Primeiro ela ficou surpresa, depois um pouco mais cautelosa.

- Sabe, amiga. Você não ficou nem um pouco preocupada? Sei lá, vocês não se conhecem, nunca se viram e nem nada... Ele pode estar mentindo sobre alguma coisa da vida dele.

- Claro que não... Será? Acho que não...

- É, eu também acho que não, pelo que você contou sobre como conversam e a frequência, ele deve ser bem verdadeiro, mas só tem um jeito de descobrir...

- Qual?

- Ué, se encontrando.

Conhecê-lo pessoalmente. Nossa, isso realmente mexeria comigo. Será que eu teria coragem?

- Mas e se ele não quiser?

- Ai você já descarta.

- Mas ele pode estar assustado.

- É bem provável que você esteja mais assustada que ele.

- Ele pode ser tímido pessoalmente, sei lá.

- E ai? Por que vocês são dois tímidos vão ficar nessa o resto da vida? Vamos lá, pega esse celular e liga. – já disse colocando o telefone na minha mão.

- Posso mandar uma mensagem?

- Tá bom... Manda, mas marca logo.

Comecei a escrever mas depois apaguei. Suspirei, pensei um pouco e voltei a digitar. Denise continuava me olhando fazendo pressão psicológica, o que me deixava apavorada.

- Olha, ainda hoje, eu prometo que falo com ele.

Surpreendentemente ela tirou o celular da minha mão de uma forma um pouco brusca.

- Ah, deixa que eu te ajudo.

- Não! Deixa. – tentei agarrá-la mas ela desviou.

- Prontinho. – me disse com um sorriso.

Eu peguei o telefone de volta totalmente desconcertada. Ela escreveu: “Oi, amanhã você tem algum compromisso? Tava querendo ir no cinema, quer ir comigo?”

- O que você fez menina?

- Você vai me agradecer. Vai ver só.

- E se ele não responder?

- Então é porque nunca quis nada sério.

Uns dois minutos depois ele visualizou a mensagem e em seguida começou a escrever alguma coisa.

“Nossa, não esperava esse convite de repente. Mas pode ser, eu tô louco pra te conhecer ☺”

- Tá vendo boba? Agora se prepara, marca em um shopping bem movimentado, só por segurança, ok? E me mantém informada de tudo! – me cumprimentou com um beijo no rosto e saiu dando um tchau.
Sentei na cama e coloquei a mão na boca, ainda sem acreditar naquilo, finalmente eu ia conhecer o rapaz que a quinze dias me fazia a mulher mais feliz do mundo. Me deu um ataque de risos, andando, sentada, deitada, rolando. Aquilo era tão encantador que parecia mentira. Nunca namorei sério, o único cara que fiquei já fazia tempo e ele não queria nada com nada. Será que dessa vez finalmente encontrei alguém certo? Já comecei a pensar na roupa, no sapato, no penteado, na
maquiagem...

No sábado não podia segurar o nervosismo, olhava no relógio o tempo todo, mas parecia que os minutos demoravam um século para passar, até que faltavam só duas horas para sair de casa e para a minha surpresa começou a chover. Droga... E a chuva só engrossava. Não conseguia parar de pensar no encontro e estava tão angustiada que deu até vontade de chorar, até que recebi uma mensagem do Vinicius.

“Oi, só pra confirmar, vc ainda vem?”

Inacreditavelmente, a chuva parou e respondi:

“Sim!! Daqui a pouco tô saindo.”

Terminei de me arrumar e fui para o shopping. Confesso que cheguei muito cedo, quase uma hora antes e fiquei dando várias voltas pelas lojas, meio porque estava tão apreensiva que não conseguia ficar parada. Esperei, esperei até que meu celular tocou.

- Alô – atendi.

- Oi Letícia, onde você está?

- Estou aqui perto do cinema.

- Eu tô indo ai, me espera, hein.

- Tá bom.

Olhava para todos os lados até que enxerguei alguém que parecia com ele. Vestido com uma calça jeans e camisa branca veio se aproximando e quando me viu abriu um largo sorriso, o mesmo que tinha nas fotos.

- Olá! Então você que é a Letícia?

- É... E você o Vinicius.

- Prazer, agora pessoalmente – disse pegando minha mão e beijando-a.

- Nossa, que cavalheiro.

- É o mínimo como devo tratar uma dama tão linda.

Percebi meu rosto ficando vermelho. Estava embaraçada e ter consciência disso me deixava ainda mais sem jeito.

- Você quer comer alguma coisa?

- Quero sim. Vamos?

Ele era perfeito. Igualzinho como no telefone, parecia que nos conhecíamos a anos. Falávamos sobre tudo, ríamos muito, ele me escutava, falava tudo na hora certa. Depois fomos ao cinema. O filme que escolhemos começava tarde e a sala estava vazia. Fomos para a última fileira.

- Tem certeza que não quer pipoca? – ele me perguntou.

- Tenho sim, acabamos de comer...

- É verdade, mas se quiser, não tem problema, eu pego pra você. – falou isso e me olhou sorrindo. Não consegui responder nada por um tempo, apenas o olhava retribuindo o sorriso. – A sessão vai começar.

Eu não estava muito interessada no filme, na verdade. Prestava mais atenção nele. Às vezes tinha a impressão de que estava me olhando e quando virava meu rosto trocávamos sorrisos. Em um momento, Vinicius se aproximou e cochichou no meu ouvido:

- Você está entendendo o filme? – disse dando uns risos.

- Na verdade não... – respondi.

Com os rostos ainda próximos, pude sentir a sua respiração, meu coração batia mais forte e achava ver um brilho diferente em seus olhos. Nos aproximamos cautelosamente e com alguns milímetros de encostarmos os lábios ele perguntou:

- Quer namorar comigo?

Eu não conseguia responder nada. Só pude beijá-lo, da forma como sempre quis. Um beijo incrível, tão doce quanto mel.

- Isso é um “sim”?

- É um “com certeza”.

E continuamos assistindo o filme. Quer dizer, continuarmos na sala do cinema.

Na dúvida, ligue

João saiu correndo do quarto, ainda vestindo a camisa e calçando o sapato, quase que ao mesmo tempo, mas perdeu o equilíbrio no alto da escada e acabou rolando até embaixo. Um pouco atordoado tentou levantar-se, mas não conseguia. Ainda esparramado no chão, o barulho da porta dos fundos abrindo o torturava. Ele tinha que fazer algo, ninguém podia vê-lo ali. Pensa, pensa, pensa...

Enrico tentava destrancar a porta mas não conseguia, ela parecia emperrada. Pensou em ir até a da frente, mas esquecera a chave no escritório. Enquanto tentava forçar a fechadura com um pedaço de arame ouviu um barulho vindo de dentro da casa, parecia que alguém tinha caído da escada. “O que será isso?”.

João continuava no chão, gemendo como um gato dengoso (tentava ser o mais discreto possível) tentando pensar em uma saída honrosa para aquela situação, embora nada lhe ocorrera. De repente olhou para o lado e viu um banco de madeira com algumas cartas em cima. Se arrastou até ele e com muita dificuldade sentou-se, ainda gemendo.

No lado de fora, Enrico ouviu um outro barulho estranho, esse era mais sutil, mas talvez mais intrigante. Era um miado? Desde quando tinham gatos em casa? “De repente foi ele que caiu da escada”. Ao ver que não conseguiria abrir a porta deu a volta a foi em direção à janela lateral da casa.
Sentado no banquinho, João viu uma sombra aproximando-se da cozinha e seu coração ficou ainda mais tenso. Tinha a impressão de que o vomitaria a qualquer momento. Pensa, pensa, pensa... “Que tal abrir a porta da frente?”. Teve que concordar que essa era a coisa mais lógica a imaginar e por dois segundos se martirizou por não considerar essa hipótese antes. No terceiro segundo decidiu agir, olhou para o outro lado da sala e viu uma chave na mesinha de centro. Mas como chegaria até lá?

Enrico não fora muito feliz na ideia de arrombar a própria casa, tinha que convir que aquela nunca foi sua especialidade, ainda mais usando um galho velho. Embora estivesse com a cortina fechada, pode ver uma sombra se movendo na sala. “Ah, esperto, acho que hoje teremos um gato escaldado.” Mudando a estratégia, retornou à porta dos fundos.

João já estava desesperado e decidiu se arrastar até a mesa. Além de ser uma boa forma de se locomover em seu estado, era uma maneira discreta, que não chamaria a atenção de ninguém no lado de fora. Só não esperava que sua coluna travasse bem no momento que alcançara a esperada chave.
Nos fundos da casa, Enrico tirou o celular do bolso. Olhou, olhou, e tentou destrancar a porta mais uma vez. No interior da casa, João travado olhou para o telefone ao lado da chave. Olhou, olhou e tentar ir em direção à porta mais uma vez. Nem um e nem outro foi feliz no seu objetivo. Enrico não conseguiu desmantelar a fechadura e João mal segurou na chave. A única saída para ambos era fazer uma ligação.

Exatamente quatro minutos depois chegaram dois carros da polícia na residência. Enrico foi correndo, aliviado, mas a primeira coisa que ouviu foi: “ponha as mãos atrás da cabeça, qualquer momento atiramos.” A mesma coisa ouviu João alguns instantes depois, quando um policial chutou a porta da frente. Os dois estavam presos, por invasão.

Houve a necessidade de chamar os bombeiros para remoção João da casa. Enrico continuava no carro da polícia tentando explicar sua inocência. De repente, quando saíram com uma maca, Enrico não acreditou no que viu.

“Ei! Esse é o meu filho!”

Ao ouvir isso, João estranhou: “pai?”

Um dos policiais abaixou o óculos escuros: “vocês se conhecem?”

“Por que você tentou invadir a própria casa?”

“Deixa de ser tapado menino. Esqueci a chave. Por que não falou nada e ainda fez todo aquele barulho? Pensei que fosse um bandido!”

“Eu que pensei que fosse um bandido entrando pelos fundos. Levantei correndo e cai da escada.”

“Não te chamei porque achei que estivesse na escola.”

“Hoje acordei atrasado...”

“Você merece uma surra, moleque.”

Lembranças

Dizer que Yasmin tinha uma beleza fora do comum era ser redundante ao que todos viam. Além de bonita, era uma advogada bem sucedida, independente, falava três idiomas. Uma mulher que realmente servia de modelo para tantas outras como também para os homens ao seu redor. Sua rotina incluía muitas horas no escritório, no fórum, almoçando com os clientes e às vezes em algum happy hour com os colegas de profissão. Saia bem cedo, chegava bem tarde. Ao entrar no apartamento, já tirava o terninho, largava sobre a mesa, abria a janela que passava o dia fechada, colocava um congelado no micro-ondas e deitava no sofá com os pés sobre a mesinha de centro, enquanto olhava no tablet sua caixa de emails e algumas notícias na internet. De vez em quando substituía a janta por uma taça de vinho na cama, o que lhe ajudava a pegar no sono. Nunca sentiu falta de marido, nem de crianças. Eles só atrapalhariam sua sacra rotina e desestabilizariam a carreira bem sucedida que construíra com o passar dos anos.

Uma certa noite, chegou do trabalho, abriu a janela, pegou uma taça de vinho, sentou-se no sofá e pôs-se a pensar. Depois de alguns minutos olhando para as mãos, levantou-se, foi até a geladeira e deu uma espiada no que tinha. Logo concluiu que precisava fazer compras urgente, porque só viu água, leite, gelo (que não deixava de ser água) e um pedaço de queijo (que não deixava de ser leite). Com cara de contrariada, pegou o pedaço de parmesão, pôs em um prato, abriu a gaveta do armário procurando alucinadamente algo e com a mesma cara que fez ao pegar o queijo, tirou uma caixa de fósforos.

Levou tudo para a sala, pôs na mesinha, respirou fundo e pensou se fizera certo ao largar o noivo três anos atrás por ele achar que ela trabalhava demais, embora se amassem, ou quando saiu da casa dos pais simplesmente por acreditar que já merecia ter sua própria independência. Talvez o problema fosse ter desistido do intercâmbio que o tio lhe prometeu um tempo atrás por estar vivendo a melhor fase de sua carreira, onde não poderia ir para fora do país. Contar os rapazes que ela dispensou era impensável, de tantos que foram. Até os amigos mais próximos, que cresceram juntos, não puderam competir com sua agenda tão concorrida. Yasmin não fazia ideia de que filme estava em cartaz no cinema, qual era o preço de uma pizza e nem como era o parque a dois quarteirões de seu apartamento. Mas aquele era o preço a ser pago pelo seu sonho, ela argumentava. Ser uma advogada reconhecida, futura promotora pública, famosa pela solução de casos importantes no país. Isso era o que ela sempre quis ser e ter, perder o demais era uma consequência necessária, por mais que ela nunca tenha pensado sobre isso, apenas sentido a solidão, a tristeza, a ausência de um ombro amigo. Talvez por isso tenha se transformado em uma workaholic, pensando em trabalho vinte e quatro por dia para esquecer fácil que não tinha mais ninguém ao redor.

Naquela noite, porém, enquanto acendia um fósforo e o espetava no queijo a sua frente para assoprá-lo e cantar parabéns pelos seus trinta anos, era impossível não lembrar de tudo isso. O que lhe consolava, porém, era justamente o que mais lhe afligia, que a culpa de tudo aquilo, era sua.

O sonho de Marcela

Marcela tinha um sonho: ser famosa. Há quem diga que ela tinha talento, mas isso não era unanimidade. A única coisa com que todos concordavam é que ela levava jeito para chamar as atenções para si. Era incansável o número de vídeos enviados para a seleção de reality shows de confinamento, namoro, sobrevivência na selva e até para aqueles que exigiam um pouquinho de dom – culinária, musicais, novos atores. Os diretores de TV já deviam estar cansados de vê-la, senão em vídeo, nas plateias onde ela era quase onipresente, e SEMPRE, SEMPRE, SEMPRE participava quando davam oportunidades (ou não). Os editores das principais emissoras não aguentavam mais cortar sua imagem. O clima em cima dela era tão pesado que os organizadores de caravanas já não a queriam nem fantasiada de Xuxa.

Mas Marcela tinha um sonho: ser famosa, por isso não se abalou com a perseguição que sofria, pelo contrário, isso apenas lhe dava mais ânimo para buscar novas formas de conquistar a fama. E eis que surgiu a grande ideia! A partir de agora ela não seria Marcela, seu nome era Mary Star. A nova identidade veio com o pacote completo: os cabelos longos e negros deram lugar a um corte Chanel cor-de-rosa, os olhos castanhos ficaram verdes graças à mágica das lentes, as roupas que já eram curtas, bem... ficaram ainda menores. Se o seu objetivo era chamar a atenção, pelo menos na rua ela já fazia sucesso. Era impossível vê-la e não notá-la, por onde passava virava o assunto. Era comum ver celulares posicionados para fotografá-la e chegaram a fazer até página nas redes sociais. A Mary “Street” (já que poucos sabiam quem era) virou um dos memes mais compartilhados na web. Mas não era isso que era queria. Ela queria apresentar um programa em horário nobre para o Brasil inteiro e não ficar apenas na internet. Eis que foi sacada sua carta da manga.

A agora Mary Star tinha um sonho: ser famosa na televisão e para realizá-lo estava disposta a fazer tudo. Usando sua popularidade online, postou um vídeo intitulado “Me chama Globo”, onde fez uso da melhor cara lavada que tinha para pedir emprego na emissora da família Marinho. Não se sabe que os executivos globais souberam dessa gravação, mas a concorrência soube e não demorou para ela começar a realizar seu grande sonho – ser entrevistada no palco de um talk-show.

Não era exatamente o que ela esperava, mas para início de carreira, já estava bom. O programa: “SubPop”, famoso pelas conversas proibidas a menores de dezoito anos e pela revelação de pseudo-celebridades, que na prática só eram conhecidos da família, (mas isso nem a Mary era direito, afinal apenas seus pais acompanharam o processo de mudança da filha. Os tios, primos e amigos mais distantes ao vê-la na TV nem suspeitaram se tratar da Marcela). O assunto discutido era “tudo pela fama” e na roda de conversa estavam também ex-paquitas, ex-chacretes e ex-bbb. A participação no programa lhe rendeu diversas outras aparições na mesma emissora, sempre falando de assuntos banais, com a câmera filmando suas pernas afim de atrair um ou dois pontos de audiência. Mas a Globo mesmo, nem dava sinal...

Podia estar bom para qualquer mortal, mas aquele não era o sonho de Mary Star. O seu sonho já sabemos qual era, o que não poderíamos imaginar é que ele a levaria tão longe. Após quase um ano participando de diversos programas popularescos, Mary decide fazer diferente, ir na porta da TV Globo, pedir pessoalmente uma oportunidade. De repente os diretores tinham que vê-la em carne e osso para testificarem de seu carisma e espontaneidade. Mas ela não trabalhava e a única fonte de renda eram os cachês que recebia no outro canal, o que mal dava para comer. O jeito encontrado para viajar de São Paulo ao Rio de Janeiro foi pedir doações na internet. Em pouco tempo a corrente ‪#‎starrumoaosucesso‬ virou febre e arrecadou o suficiente para comprar a passagem de ida e volta, de ônibus já que ela tinha medo de avião. Pois bem, Mary embarcou na rodoviária do Tietê em uma noite chuvosa e de muito trânsito. Em sua mão havia uma câmera registrando cada momento da viagem, que viraria um reality-show no SubPop. Mas ela dormiu e não viu o que estava prestes a acontecer. O motorista estava cansado e a pista escorregadia, em questão de segundos o ônibus caiu em uma ribanceira, matando todos os passageiros.

Mary Star tinha um sonho: ser famosa. Mas um acidente mudaria seus planos. Na verdade o acidente poderia até concretizá-lo, afinal foi notícia até no Jornal Nacional. Mas entre tanta vítima mostrada, não havia a famosa. O SubPop e outros programas, como o “A tragédia é sua” fizeram uma ampla cobertura. Foram usadas imagens de arquivo e da internet de Mary, foi revelado seu nome verdadeiro, Marcela, chamaram videntes para conversar com ela após a morte, amigos de infância e até os organizadores das caravanas que a proibiram de participar das plateias. Enfim, tudo tornou-se um verdadeiro circo, dando a agora falecida a fama que ela tanto queria. Na verdade não era exatamente o que ela queria, porque a Globo mesmo, nem passou perto de perceber sua existência.

Vida de Papai Noel

Ficar horas embaixo daquele monte de pano enquanto crianças sentam em seu colo não é nada fácil. Se a aposentadoria de Leopoldo fosse descente, ele com certeza estaria na praia tomando água de coco naquele momento, mas infelizmente era obrigado a passar por aquele ridículo todos os anos.

Dia 20 de dezembro o shopping estava abarrotado de gente e a fila na casinha do Papai Noel era uma das maiores. Haviam crianças para todos os gostos. Ricos, pobres, espertas, bobas, mimadas, desiludidas, mas todas, sem exceção, enganadas pelos pais que alimentavam aquele personagem fictício em suas mentes. “Eles não conseguiram educar os filhos o ano inteiro e agora querem passar a batata quente pra mim”, Leopoldo sempre pensava quando tinha que tirar alguma foto. Os momentos mais insólitos que ele tinha eram com as crianças que puxavam a barba perguntando se era de verdade. “Rô, rô, claro que é de verdade, querido”, era o que sua boca dizia, mas no fundo, o que ele pensava era: “claro que é, seu pestinha, você acha que é fácil deixar essa barba crescer o ano inteiro?”.

Finalmente, a fila sumiu e embora ele soubesse que aquela paz duraria apenas alguns instantes, precisava urgentemente tirar água do joelho. Já não se podia exigir tanto da bexiga de um velho de setenta anos, ainda mais depois de seis horas sentado. Ao entrar no banheiro, todas as cabines estavam ocupadas e automaticamente, enquanto dirigia-se ao mictório já tentava encontrar o zíper da calça escondido entre tantos panos. Depois de uma caçada alucinante em que ele sinceramente pensou que perderia, finalmente sentiu a urina sendo expelida de seu corpo, o que acompanhou uma maravilhosa sensação de alívio que o fez fechar os olhos e respirar fundo rascunhando um leve sorriso em meio a barba branca.

“Papai Noel?”. Leopoldo virou-se assustado ao ouvir e assustou-se mais ainda ao ver um pirralho que não devia passar dos sete anos. “O senhor usa o banheiro também?”. A pergunta soava tão idiota quanto “você é de verdade?”. “Claro que uso, moleque, acha que sou uma máquina?”. O menino, com os olhos arregalados tentou argumentar – “nunca ouvi dizer que você parava de entregar presentes para fazer xixi”, “pois é, mas eu paro” – respondeu o bom velhinho, que ainda completou – “é melhor você ir lá pra fora com seu pai e fingir que não viu nada”. O rapazinho parecia insistente – “Mas eu vi você aqui. E o Papai Noel não é tão mal educado assim”. A paciência de Leopoldo desceu com a água pela pia, ele abaixou-se à altura do menino, segurou-o pelos ombros e falou firme: “escuta aqui, moleque, eu só estou aqui pela grana, não gosto de criança, nunca gostei e nunca gostarei, odeio o natal, não acredito em papai noel, nem em espírito natalino e muito menos que crianças mereçam presentes. Então pelo bem de todos acho melhor você voltar lá pra fora e esquecer que me viu.” O garoto deu um sorriso que gelou sua espinha, virou-se e saiu correndo em direção à porta. Alguns instantes depois foi a vez de Leopoldo sair do banheiro e ir em direção à sua casinha, guardada pelas Mamães Noéis, que organizavam a fila que aparecera em poucos minutos. Qual não é a surpresa do bom velhinho ao ver o menininho chato aguardando para tirar uma foto com ele...

“Rô, rô, rô, feliz natal querido! Me diz, o que você quer ganhar de presente?” – o saudou com o texto padrão.

“Nossa Papai Noel, essa sua barba é de verdade?” – o menino perguntou enquanto puxava com força a barba dele.

“Sim, é de verdade. Pode soltar agora”.

“Mas ela é tão macia. Posso cortar um pedaço?”

Leopoldo vê um sorriso sarcástico na criança e quase levanta a mão em sua orelha, mas se acalma quando o pai intervém.

“Filho, solta a barba do Papai Noel, senão ele não vai te dar um presente.”

“Ele não é o Papai Noel, ele nem gosta de natal e nem de criança.”

O pai, visivelmente constrangido, pega o menino no colo enquanto se desculpa com o velhinho. Leopoldo levanta-se e com um súbito quase vai embora deixando as pessoas na fila a ver navios, mas em questão de milésimo de segundo lembra-se de sua aposentadoria e de quanto receberá pela encenação toda. “Vamos lá, faltam só quatro dias”. Assim, ele volta a sentar-se e a receber com um sorriso no rosto a próxima criança.

O espetáculo do século

Naquela manhã, Gustavo saltou da cama pontualmente às 6 horas, e nem foi preciso o despertador tocar, na verdade ele mal dormira a noite ansioso por aquele dia. Sua mãe o recebeu admirada enquanto preparava o café.

- Meu filho, você precisa descansar, a viagem será longa.

Ele, porém, já estava elétrico. Toda a energia que uma criança de sete anos pode ter se concentrara nele. Sua família iria até Campinas, a alguns quilômetros de distância, prestigiar aquele que vinha sendo considerado o maior evento da Terra nos últimos anos. O governo preparou diversos ônibus que levariam as pessoas de todo o país para a assistirem. Alguns estrangeiros, argentinos e paraguaios principalmente, já estavam acampados a pelo menos uma semana. A expectativa era tão grande que a maioria das empresas deu os três dias de folga aos seus funcionários, além do fatídico dia, o anterior e o seguinte, para que todos pudessem viajar tranquilos.

Nelson logo chegou trazendo pães. Cumprimentou a esposa com um beijo na testa e Gustavo com um cafuné na careca.

- Ei menino, a quanto tempo você não passa creme na cabeça?

- Ah, pelo que conheço dele a um bom tempo. Se eu não lavo esse menino, ele fica todo engordurado.

- Mas pra que se lavar? Hoje poderemos tomar um banho de verdade!

Nelson e sua esposa se entreolharam tristes e continuarem a preparar as coisas.

As passagens já haviam sido compradas a muito tempo e os três chegaram à rodoviária com meia hora de antecedência, mas como saiam ônibus a cada quinze minutos, o terminal estava muito lotado. Gustavo logo começou a se desesperar.

- Calma, meu filho. – sua mãe tentou acalmá-lo. – eu sei que você não está acostumado com tanta gente mas é rápido, daqui a pouco chegaremos lá.

Embora Gian Lareote não fosse uma unanimidade entre os eleitores, afinal foi eleito presidente vitalício com 52% dos votos, era inquestionável sua capacidade de organização. Muitos temiam sua pouca experiência na gestão pública, com apenas trinta anos, mas a colher de chá lhe foi dada mais ou menos com a tranquilidade de que se ele fizer um mal governo suas chances de ser “apagado” eram muito altas, pelo menos foi assim que os últimos três terminaram. Mas em seu primeiro ano à frente daquele Brasil caótico, o transporte público melhorou muito. Com a proibição de carros particulares circularem, os ônibus e os poucos trens eram a única opção de deslocamento, mas até então sofriam com o descaso dos órgãos competentes. Gian teve como principal promessa de campanha a modernização e aumento da frota, promessa essa que foi atendida imediatamente após a eleição. O bom é que o trânsito já não existia mais e todos podiam viajar razoavelmente confortáveis dentro dos coletivos.

Finalmente o momento do embarque chegou, Gustavo e a mãe sentaram nas primeiras cadeiras, enquanto Nelson os acompanhou ao seu lado, em pé no corredor. O assunto entre todos os passageiros era um só, todos aguardavam ansiosamente aquele espetáculo raro e que ninguém fazia ideia de quando ocorreria novamente. A última vez que havia um registro sobre aquilo datava de mais de duzentos anos antes, em 2300, na Califórnia, Estados Unidos. Para Gustavo, porém, o mais importante era a paisagem que os acompanhava na janela. Passaram por uma longa estrada bem cuidada, mas não havia nenhuma casa, nem posto e nem nada nas margens. Era apenas um grande deserto. Via-se muita areia e uma poeira vermelha que subia no horizonte. Gustavo olhou para a sua mãe e perguntou:

- Por que a senhora usa esse lenço?

- Ué, todas as mulheres usam, filho.

E era verdade. No ônibus todas as passageiras usavam lenços para cobrir a careca. O estilo dava-se pelas estampas que iam desde flores coloridas a grandes fênix cor de fogo.

- E por que os homens também não usam?

- Ah, porque lenço é coisa de mulher.

- Hum... E boné. É coisa de criança?

Os pais riram da ingenuidade do menino, que ainda não era capaz de enxergar as mazelas que a vida lhes oferecia.

- Mamãe, eu tô com sede.

- Gu, você já bebeu sua cota de água hoje de manhã, não foi? Agora tem que esperar a noite.

- Mas mãe... Nós não vamos poder beber daqui a pouco?

- Não sei, é melhor esperarmos chegar lá então.

Em menos de duas horas eles já estavam na cidade. O ônibus estacionou ao lado de diversos outros e todos foram descendo ansiosos. A primeira coisa que viram foram várias equipes de reportagem, de todo o mundo, que gravavam matérias, entrevistavam especialistas, curiosos, políticos. Um grande palco foi montado no centro para um show com os principais nomes da música brasileira. Os artistas vinham se apresentando desde a noite anterior e conforme terminavam de cantar iam sendo disputados pelos repórteres, principalmente os que buscavam subcelebridades. Mas quando o presidente da república, Gian, chegou todas as atenções se voltaram para ele, que misteriosamente preferiu manter o silêncio embora a multidão o chamava para um discurso naquele dia tão solene.
Era 3 da tarde e segundo a previsão dos cientistas, o esperado acontecimento ocorreria dentro de alguns minutos. Uma grande multidão aguardava em volta de uma gigantesca cratera aberta pelo governo a um ano quando começaram as especulações sobre aquele fenômeno. Embora muita gente quisesse levar baldes, panelas, garrafas, os organizadores vetaram esses objetos sob a alegação de aquele era um bem comum e que portanto era responsabilidade do Estado fazer toda a captação necessária para uma distribuição justa dos recursos.

Gustavo estava em pé, entre seus pais, todos olhando ansiosamente para o céu, que já estava com uma coloração um pouco mais escura. De repente, o garoto sente algo pingando em seu rosto.

- Ei! Caiu alguma coisa em mim!

Todos o olharam felizes e logo outras pessoas começaram a sentir pequenas partículas de água caindo. Quando menos esperavam, ouviram um forte barulho e todos se apavoraram, sem saber de onde via. Um meteorologista anunciou no sistema de som que era o que antigamente conhecia-se como trovão ou relâmpago, eles não sabiam ao certo, mas que todos poderiam ficar calmos. Ao terminar de falar, começou um pé d’água no exato local onde estavam. Todos ficaram encantados e queriam correr para se molharam. Os seguranças não permitiam, pois isso atrapalharia o escoamento da água paras as canaletas projetadas ao reservatório, mas foi difícil segurar as crianças que mesmo nunca tendo visto uma chuva na vida deixaram seus instintos falarem mais alto e foram correndo se molhar. Entre os adultos era comum vê-los chorando, pois também nunca tinham presenciado tal acontecimento. A inexperiência, porém, trouxe alguns prejuízos, como celulares, relógios, filmadoras e até o equipamento de algumas emissoras que queimaram, pois a maioria não era preparado para a chuva. Na realidade, ninguém ali sabia o que era uma chuva. Mas menos de cinco minutos depois ela parou. Todos se olharam, viram-se molhados e no ecoar do horizonte pode-se ouvir uma tremenda salva de palmas, pois aquelas pessoas tiveram a alegria de presenciar um acontecimento único na história.