sábado, 10 de outubro de 2015

A bruxa, o unicórnio e a princesa

Rodrigo já não sabia o que era ter uma boa noite de sono a pelo menos um mês, quando se intensificaram os preparativos para o seu TCC. O trabalho era todo dele, pois devido a falta de tempo, ninguém conseguiria acompanha-lo em sua rotina maluca. Os últimos dias, porém, foram ainda mais desgastantes. A pelo menos uma semana seu cérebro funcionava movido à café e energético. Trabalhava durante o dia, relia o trabalho nas pausas e no almoço, comia um lanche qualquer quando dava, lia novamente no ônibus, no metrô ou em qualquer outro lugar que estivesse, estudava as matérias da noite na faculdade e de madrugada mergulhava mais uma vez nos livros, no computador e onde fosse necessário para finalizar o trabalho. Aquele, lembrava-se ele, era o último obstáculo a ser superado antes de alcançar o seu sonho: ser engenheiro.

O dia da apresentação começou antes mesmo do anterior terminar. Havia acabado de cochilar quando o despertador tocou. Rodrigo levantou-se devagar, mas o cansaço e as olheiras logo sucumbiram à adrenalina e ao sorriso pela chegada daquela data, que para ele, era tão importante. Tomou um banho rápido, colocou uma roupa, encheu a mochila de livros e saiu de casa, só não tinha percebido que no lado de fora caia uma chuva torrencial. Procurou um guarda chuva velho dentro de uma caixa na garagem e achou um cor-de-rosa, que era melhor do que nada. Como o aguaceiro não dava trégua, resolver sair assim mesmo, pois caso se atrasasse para entrar no trabalho, não poderia sair mais cedo. Logo percebeu que aquela não fora uma ideia sensata. Na metade do caminho entre sua casa e o ponto de ônibus, bateu uma ventania que quase o levou embora, não o fez, mas o seu guarda-chuva não teve a mesma sorte. Desolado e já todo molhado decidiu após uma análise mental abrigar-se embaixo de uma árvore, que não desapontou sua conclusão, nenhum raio foi atraído para ela. Após uns cinco minutos a chuva diminuiu e ele pôs-se a correr o mais rápido que conseguia.

Chegando na avenida, precisou parar e esperar o semáforo lhe permitir a travessia, o problema é que nesse tempo o bendito ônibus estacionou no ponto. Todo molhado e com medo de se atrasar, decidiu arriscar a vida mais uma vez e como que por um milagre chegou ao outro lado são e salvo, pena que o motorista não o viu, fechou a porta na sua cara, mesmo com as batidas dadas na lateral, e manobrou para sair. Conformado, Rodrigo virou-se e foi em direção ao banco, quando um senhor de cabelos brancos e bengala começou a lhe apontar para trás e cochichar alguma coisa.

- O quê? Não estou entendendo.

Um outro rapaz, forte e com um boné, disse:

- O ônibus, cara, corre lá!

Rodrigo virou-se de volta o viu que o motorista havia aberto a porta mas estava querendo fechar, então mais uma vez correu e conseguiu embarcar, ainda que sob os olhares divertidos de quem acompanhava a cena. Pelo menos ele entrou e não chegaria atrasado no serviço. Passou pela catraca e ficou procurando algum banco vazio, o que é claro não encontrou.

Encharcado, continuou andando pelo corredor relativamente vazio e parou no fundo , ao lado de uma simpática senhora de cabelos brancos e muitas rugas no rosto e um cara magro com uma tentativa frustrada de cavanhaque com fone de ouvido. Pôs a mochila toda molhada no chão e logo pensou que era um gênio por colocar o trabalho dentro de uma pasta, senão estaria todo molhado como o restante das coisas. Tirou o caderno de dentro e o abriu, intencionando dar mais uma revisada no que falaria para a banca dali a algumas horas. Ele estava um pouco molhado mas ainda dava para ler o que estava escrito. Logo de cara, porém, percebeu ter pego o caderno errado. Aquele tinha um título estranho: Malleus Maleficarum . O que era aquilo? Latim? Alguém devia tê-lo posto por engano lá, mas quem? Rodrigo não desgrudava daquela bolsa por nada. Ao abrir aquilo, percebeu páginas com o amarelo velho, folhas duras e levemente gastas nas margens. Não estava escrito em português, ele sabia, mas conseguia entender perfeitamente o que dizia. Um latim rústico, acompanhado de diversas figuras, com monstros, reis, castelos, forcas. Sem entender o que fazia com aquilo nas mãos, levantou o rosto e no lugar da simpática senhora sentada em sua frente, quem lhe dirigia o olhar era uma bruxa horrível, com um nariz pontudo, um véu negro na cabeça e língua bifurcada como uma serpente. Os olhos de Rodrigo saltaram e voltaram-se ao livro, onde dava claras instruções de como agir em uma situação daquelas.

A senhora preocupou-se com a forma como o jovem a olhava e lhe perguntou se estava tudo bem. Rodrigo com a respiração cada vez mais ofegante respondeu um “cala a boca, sua bruxa!”. Ela ficou transtornada e sem reação, ao passo que um homem sentado na cadeira da próxima fila o interrogou: “o que você pensa que está fazendo?”. Rodrigo sem entender onde estava, viu um cavaleiro, vestido com um escudo dos pés à cabeça levantar-se ao seu lado perguntando o que está havendo. Ele fechou o livro e gritou: “Precisamos nos unir para acabar com elas. São um exército do inferno tentando nos levar embora.”

Uma jovem vestida de social, que estava em pé perto da porta, entrou na discussão: “do que você está falando?”. Rodrigo a enxergou como uma linda princesa, vestida com um radiante vestido branco e ajoelhou-se para cumprimenta-la.

-Mademoiselle, perdoe-me pela demora, mas em breve a tirarei desse recinto do mal e a levarei em paz e segurança até nosso castelo onde viveremos felizes para sempre.

A moça, claro, ficou inconformada com aquilo e com cara de poucos amigos enfiou a mão no rosto do rapaz no mesmo instante em que o motorista deu uma freada brusca. O resultado foi que Rodrigo caiu desacordado e foi ralando pelo corredor.

Ao acordar viu a moça de social, a simpática senhora e várias outras pessoas ao seu redor. Continuava no ônibus, e todos perceberam que ele podia estar delirando por causa da febre, então o puseram sentado e pediram para o motorista ir até o hospital.

- O que aconteceu? – Ele perguntou.

- Você mandou ela calar a boca e a chamou de bruxa.

- Mas tudo bem, meu filho. Você está fervendo e está molhado da chuva.

Ele respirou fundo, olhou para fora e viu algo mágico. Um unicórnio correndo ao seu lado, daqueles com um chifre na testa. Em cima estava um cavaleiro vestido com uma roupa de couro preta que olhava em seus olhos e tentava falar algo, que ele entendeu sendo “não desista de sua missão”, mas na verdade o motoqueiro com a antena na moto perguntava “o que tá olhando, irmão?”.
Após aquela mensagem clara de qual era sua missão no mundo, voltou a olhar ao seu redor e ali estavam a bruxa, o homem com a armadura, a princesa e ainda outras pessoas. Na verdade percebeu estar em um mundo diferente, o mundo da fantasia, que era real, ele era de lá, tudo que passara até então era um teste. Aquela era sua verdadeira missão: resgatar a princesa encantada das mãos daquela bruxa nojenta e seus capangas. De repente deu um grito de guerra que assustou a todos, levantou-se e deu um soco no rapaz de terno, que estava para mata-lo, um chute na moça da porta que queria atirar-lhe um encanto da morte e quando foi em direção à tal bruxa, percebeu um anão nos braços de uma serviçal da velha.

- O que esse anão faz nos seus braços? Você o está protegendo?

Chorando, a pobre mãe que levava o filho de três anos ao médico disse que ele era só uma criança e implorou por compaixão.

- Pobre mulher, sua família deve estar de refém no caldeirão amaldiçoado, o que está cegando seus olhos. Pois bem, proponho um acordo, a vida do anão pela da bruxa?

- O quê? Você está louco? – gritou uma voz lá na frente.

- Exijo a liberdade de minha amada e morte a essa feiticeira!

- Espero que sua amada esteja fora desse ônibus. – respondeu a princesa.

- Não se deixe levar pela pressão das circunstâncias, meu amor.

De repente o som de uma pancada no vidro fez com que todos olhassem para fora. Era outro cavaleiro montado em um unicórnio. Dessa vez, porém, foi possível ouvir sua mensagem:

- Algum problema ai?

No mesmo instante um amontoado de vozes dizia que sim, pediam socorro, que chamassem a polícia, os bombeiros, a TV, mas Rodrigo entendendo ser uma mensagem para ele, gritou:

- Silêncio! Sir, agradeço sua ajuda e quero pedir-lhe auxílio para resgatarmos a princesa aqui feita refém.

- Só se for sua refém, seu louco!

O motoqueiro, sem entender nada, parou a moto no acostamento para chamar a polícia. Dentro do ônibus, a criança, a simpática senhora, a moça de social, a que levou o chute e a mãe do garotinho choravam enquanto os homens mantinham Rodrigo amarrado em um dos bancos.

- Vocês estão do lado daquela bruxa, vão acabar se arrependendo. Precisam me soltar para garantirmos a integridade do mundo todo.

O que vestia armadura olhou para o simples camponês e com um aceno de cabeça concordaram no que deveriam fazer, e sem pestanejar, deu um suco bem dado no rapaz, que apagou imediatamente.
Rodrigo acordou com uma baita dor de cabeça, em uma cama de hospital, com sua mãe ao lado.

- Oi meu filho, você acordou? Como está se sentindo?

- Eu... Estou aonde?

- No hospital, você não lembra?

- A princesa? Como está a princesa?

- Que princesa, meu filho? Te achamos debaixo de uma árvore perto de casa. Caiu um raio nela enquanto chovia e você desmaiou.

- Não... Não aconteceu nada na árvore. Eu peguei um ônibus e ele me mostrou quem eu realmente era.

- Meu querido, você estava muito cansado, não dormia, não comia direito e ainda pegou toda aquela chuva e uma descarga elétrica daquelas.

- E o meu TCC?

- Sinto muito, você ficou uma semana inconsciente.

- O que?

- Mas não se preocupa. Quando você se recuperar, podemos remarcar sua banca na faculdade. Agora descansa que eu vou chamar um médico.

Ela lhe deu um beijo na testa e saiu do quarto, mas não fechou a porta. Enquanto olhava para fora, ele viu uma enfermeira bem anciã passando, mas ao passar em sua frente parou e o olhou em seus olhos. Era a mesma velhinha simpática e saia de seu sorriso forçado uma língua de serpente...

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