sábado, 10 de outubro de 2015

Lembranças

Dizer que Yasmin tinha uma beleza fora do comum era ser redundante ao que todos viam. Além de bonita, era uma advogada bem sucedida, independente, falava três idiomas. Uma mulher que realmente servia de modelo para tantas outras como também para os homens ao seu redor. Sua rotina incluía muitas horas no escritório, no fórum, almoçando com os clientes e às vezes em algum happy hour com os colegas de profissão. Saia bem cedo, chegava bem tarde. Ao entrar no apartamento, já tirava o terninho, largava sobre a mesa, abria a janela que passava o dia fechada, colocava um congelado no micro-ondas e deitava no sofá com os pés sobre a mesinha de centro, enquanto olhava no tablet sua caixa de emails e algumas notícias na internet. De vez em quando substituía a janta por uma taça de vinho na cama, o que lhe ajudava a pegar no sono. Nunca sentiu falta de marido, nem de crianças. Eles só atrapalhariam sua sacra rotina e desestabilizariam a carreira bem sucedida que construíra com o passar dos anos.

Uma certa noite, chegou do trabalho, abriu a janela, pegou uma taça de vinho, sentou-se no sofá e pôs-se a pensar. Depois de alguns minutos olhando para as mãos, levantou-se, foi até a geladeira e deu uma espiada no que tinha. Logo concluiu que precisava fazer compras urgente, porque só viu água, leite, gelo (que não deixava de ser água) e um pedaço de queijo (que não deixava de ser leite). Com cara de contrariada, pegou o pedaço de parmesão, pôs em um prato, abriu a gaveta do armário procurando alucinadamente algo e com a mesma cara que fez ao pegar o queijo, tirou uma caixa de fósforos.

Levou tudo para a sala, pôs na mesinha, respirou fundo e pensou se fizera certo ao largar o noivo três anos atrás por ele achar que ela trabalhava demais, embora se amassem, ou quando saiu da casa dos pais simplesmente por acreditar que já merecia ter sua própria independência. Talvez o problema fosse ter desistido do intercâmbio que o tio lhe prometeu um tempo atrás por estar vivendo a melhor fase de sua carreira, onde não poderia ir para fora do país. Contar os rapazes que ela dispensou era impensável, de tantos que foram. Até os amigos mais próximos, que cresceram juntos, não puderam competir com sua agenda tão concorrida. Yasmin não fazia ideia de que filme estava em cartaz no cinema, qual era o preço de uma pizza e nem como era o parque a dois quarteirões de seu apartamento. Mas aquele era o preço a ser pago pelo seu sonho, ela argumentava. Ser uma advogada reconhecida, futura promotora pública, famosa pela solução de casos importantes no país. Isso era o que ela sempre quis ser e ter, perder o demais era uma consequência necessária, por mais que ela nunca tenha pensado sobre isso, apenas sentido a solidão, a tristeza, a ausência de um ombro amigo. Talvez por isso tenha se transformado em uma workaholic, pensando em trabalho vinte e quatro por dia para esquecer fácil que não tinha mais ninguém ao redor.

Naquela noite, porém, enquanto acendia um fósforo e o espetava no queijo a sua frente para assoprá-lo e cantar parabéns pelos seus trinta anos, era impossível não lembrar de tudo isso. O que lhe consolava, porém, era justamente o que mais lhe afligia, que a culpa de tudo aquilo, era sua.

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